Lista de espera para cirurgia e retoma da atividade cirúrgica pós-covid

O sistema terá de evoluir de um modelo baseado no volume de cuidados para um modelo baseado na qualidade dos cuidados e no valor que acrescenta na saúde dos utentes.

Nos últimos dias, a velha questão das listas de espera para cirurgia no Serviço Nacional de Saúde (SNS), tem sido motivo de várias intervenções públicas. O cidadão atento, o utente afetado e todos os profissionais envolvidos têm consciência do agravamento dos atrasos nas cirurgias programadas, no SNS, desde o início do estado de emergência. O SNS cumpriu, até agora, o seu desígnio perante a pandemia: evitou-se a saturação do SNS sem que as capacidades instaladas em termos de internamento e cuidados intensivos tenham sido saturadas. Controlou-se a letalidade e conseguiu-se a diminuição sustentada da evolução do número de novos casos.

A resposta do SNS e do país (exercício político e de cidadania) tem sido um exemplo de sucesso. Para este sucesso contribuiu a reprogramação do trabalho hospitalar. O que aconteceu nos hospitais? Houve duas prioridades: 1) adaptar toda a logística para responder à pandemia (criação de circuitos de doentes covid desde a admissão até ao internamento, circuitos em sede de bloco operatório, áreas de obstetrícia, pediatria, etc.) e 2) afetação de recursos humanos ao atendimento e assistência de doentes covid, tendo como objetivo manter o atendimento base do hospital a doentes não-covid, o serviço de urgência a funcionar de forma eficaz e toda a cirurgia prioritária e oncológica, minimizando o risco de contágio entre trabalhadores da saúde com o desfasamento das equipas de trabalho e implementação de condições de proteção individual. A abordagem à pandemia teve resultados claros: letalidade e disseminação controladas, serviços de saúde que não entraram em colapso e controlo da doença entre os profissionais de saúde. Esta estratégia levou a que, necessariamente, houvesse uma notável diminuição da resposta hospitalar para cirurgias programadas não prioritárias e consequente agravamento das tais listas de espera que motivam toda uma espiral de intervenções públicas, cada uma, mais que a outra, a procurar tirar os melhores dividendos políticos.

Porque existem listas de espera para cirurgia programada no SNS?

As listas de espera para cirurgia programada existiram, existem e existirão. As listas de espera estão relacionadas com o número de doentes que aguardam cirurgia. A verdadeira questão está em quanto tempo esperam os doentes. Podemos ter uma lista com 10.000 doentes e as suas cirurgias serem realizadas num tempo considerado adequado ou, por outro lado poucos doentes inscritos e as cirurgias só serem realizadas após um tempo de espera superior ao desejável. Assim a nossa questão central tem a ver com o tempo de espera para cirurgia. 

O tempo de espera para cirurgia depende do número de doentes inscritos e da capacidade do sistema de saúde de realizar as cirurgias propostas. No sentido de optimizar o tempo de espera foi definido, inicialmente na Suécia, em 1996, o Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG). Assim, nenhum doente com necessidade de tratamento deve esperar mais do que o tempo máximo determinado. Acrescente-se que o TMRG está definido não apenas para cirurgias mas também para consultas médicas e exames de diagnóstico. O problema é que o TMRG por si só não é uma garantia do seu cumprimento. Mais do que uma garantia, o TMRG é uma aspiração, um objectivo e um indicador mensurável do funcionamento do sistema de saúde.

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A pandemia obrigou ao adiamento de milhares de cirurgias no país REUTERS/Flavio Lo Scalzo

Em cirurgia programada são definidos vários TMRG, consoante os níveis de prioridade das cirurgias, por exemplo uma cirurgia a um cancro terá uma prioridade e um TMRG diferente de uma cirurgia a vesícula biliar. Quando o tempo de espera para cirurgia excede o TMRG aos doentes é dada a possibilidade de serem tratados noutro hospital, seja ele público ou privado, de acordo com convenções realizadas com o SNS. Assim, se tivermos muitos doentes a entrar em lista de espera, encurtarmos o TMRG e não provermos o sistema de saúde de recursos adequados, criamos as condições favoráveis ao aumento dos tempos de espera para cirurgia excedendo o TMRG o que leva ao reencaminhamento dos doentes para os hospitais privados ou convencionados de forma a serem operados.

O valor referente a estas cirurgias é pago pelo Estado, de acordo com tabelas previamente definidas. O que aconteceu em Portugal foi que em 2017 pela portaria 153/2017 alterou-se o TMRG em cirurgias não prioritárias de 270 para 180 dias sem que se tivesse provido o SNS de recursos para responder a este desafio. O que desde Janeiro de 2018 aconteceu foi que os Hospitais do SNS tiveram a necessidade de continuar a responder o mais possível às cirurgias de elevada prioridade (como a cirurgia do cancro) e não tiveram capacidade para resolver dentro do TMRG o aumento de doentes motivado pela diminuição deste tempo de resposta. 

A avaliação e diagnóstico desta situação foi realizada de forma extremamente assertiva pela Entidade Reguladora da Saúde logo em Maio de 2019.  No entanto teremos de reconhecer o excelente serviço que o SNS nos presta, senão vejamos os indicadores da saúde de Portugal publicados pela OCDE relativos a 2018: esperança de vida sobreponível à média europeia (83,6 vs 84,3 anos), a acessibilidade aos cuidados de saúde também é idêntica à média europeia, a mortalidade global é inferior à média europeia, a sobrevida em cancro da mama e do cólon são superiores à média europeia. Tudo isto, apesar de termos, no contexto europeu, um PIB baixo e uma dotação per capita para a saúde de apenas 70% da média europeia, além de que a percentagem da população que tem boa saúde é bem menor do que a média europeia (48% vs 68%). Quer isto dizer que, com uma população menos saudável e com menor investimento, conseguimos ter resultados sobreponíveis e em alguns parâmetros melhores que a média europeia. Perante tantas virtudes fica, entre outros, o pecado dos tempos de espera para cirurgia programada, fundamentalmente nas cirurgias de prioridade normal, mas não podemos reduzir a avaliação das prestações do SNS aos tempos de espera para cirurgia como tantos o querem fazer para extraírem dividendos políticos e aproveitamentos eleitorais.

Como resolver o tempo de espera para cirurgia programada no SNS?

Como se compreende os tempos de espera excessivos, e excessivos significa que são superiores ao TMRG definidos? A explicação é óbvia, o sistema de saúde (oferta) não tem capacidade para resolver todas as inscrições para cirurgia (procura). A dificuldade na oferta (sistema de saúde) pode advir ou de uma inadequada utilização dos recursos instalados (profissionais e estruturas hospitalares), por exemplo não utilizar todos os tempos possíveis de bloco operatório, ou deficiência desses recursos, falta de profissionais e hospitais. Não tem muito sentido aumentar de forma descontrolada a capacidade do sistema público de saúde (oferta), pois a curto prazo as novas condições instaladas revelar-se-ão novamente insuficientes, o aumento de oferta é seguido de um aumento de procura voltando a gerar-se o problema dos tempos de espera.

Em Portugal, além da melhoria do número e qualidade dos hospitais, aumentou-se imenso a taxa de doentes operados em cirurgia de ambulatório, tudo bem feito para controlar os tempos de espera, porém houve dois fatores que influenciaram o aumento destes tempos. A saber: 1) aumento da procura (maior referenciação para cirurgia) e 2) encurtamento do TMRG. O estado tem um mecanismo de compensação para tempos de resposta excessivos: os doentes recebem vales cirúrgicos para serem operados em hospitais privados ou convencionados. Isto é: quando se atinge o TMRG, após se ter esgotado a oferta dos hospitais públicos, as cirurgias são garantidas pelo estado recorrendo a capacidade instalada em hospitais privados e convencionados. Este ponto tem de ficar muito claro, ao contrário do que tem sido dito (está-se a retirar orçamento do SNS para aumentar o recurso aos privados) não se retira orçamento ao SNS, aproveita-se a capacidade instalada nos hospitais fora do SNS para resolver os tempos de espera. Os gastos com vales cirúrgicos são controlados pela quantidade de vales emitidos.

É muito importante termos consciência que a incapacidade do sistema público para cumprir o TMRG nas cirurgias tem a ver, fundamentalmente com cirurgias de prioridade normal, as cirurgias classificadas como prioritárias e muito prioritárias são realizadas em tempo adequado pelo serviço público. Se fizermos uma avaliação honesta da situação compreenderemos que a grande maioria das cirurgias de prioridade normal podem, sem riscos para a saúde dos doentes, ser realizadas com tempos de espera superiores aos 180 dias definidos como TMRG pela portaria 153/2017. A dilatação do TMRG em cirurgias de prioridade normal e uma redefinição das indicações operatórias, tendo em conta não apenas a patologia mas também o seu real benefício, levaria a que o sistema público não necessitasse de pagar aos privados tantos vales cirúrgicos e a uma poupança de recursos, permitindo melhorar o sistema e as suas respostas. Ou seja, em vez de se intervir exclusivamente na oferta (capacidade de resposta) temos de pensar em intervir também na procura. Melhorar não significa necessariamente aumentar a oferta. O sistema terá de evoluir de um modelo baseado no volume de cuidados para um modelo baseado na qualidade dos cuidados e no valor que acrescenta na saúde dos utentes.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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