José Cutileiro, médico, antropólogo, diplomata, artista

Ao contrário de tantos, para quem a velhice é um caminho de amarguras, José Cutileiro tornou-se, com o passar dos anos, uma pessoa mais doce, aberta e generosa.

José Cutileiro era uma figura intimidante no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) quando o conheci no final dos anos 80. O autor dos Bilhetes de Colares era conhecido pelo verbo cortante e pelos juízos desapiedados. Com olhar penetrante, sobrolho ligeiramente franzido, perscrutava o jovem secretário por cima dos óculos de ver ao pé, para fazer um juízo rápido se era ou não digno de ser admitido no círculo mágico dos seus amigos.

Se não cuidava do comum dos mortais, os amigos venerava. Eram um alto critério pelo qual se media: Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires, Vítor Cunha Rego, Mário Soares, com quem teve ao longo da vida relações oscilantes e complicadas, Lord Carrington, o epígono da superioridade britânica com quem se orgulhava de ter privado nas guerras dos Balcãs, João Monjardino, Gérard Castello Lopes, Maria Filomena Mónica, e muitos colegas, como Fernando Andersen Guimarães, Vasco Valente ou Álvaro Mendonça e Moura.

O talento para a diplomacia, que descobriu um pouco por acaso, quando, após o 25 de abril, foi nomeado conselheiro cultural em Londres, não resultava apenas da lucidez com que analisava as relações de força. O treino de antropólogo habituara-o a extrair dos mais pequenos indícios grandes ensinamentos. Tudo lhe merecia atenção. Não entrava desprevenido em nenhuma conversa. Sem rodeios mas com precauções, ia direito ao assunto. Ciente da sua superioridade intelectual, nenhum interlocutor o intimidava.

Sem ilusões sobre a bondade alheia, pois também não as tinha sobre a sua própria, apreciava com frieza, mas sem cinismo, as situações com que se deparava. Com uma graça arriscada era capaz de desarmar os seus interlocutores, mesmo quando interesses e pontos de vista os separavam. Não há diplomacia sem empatia.

Marcado pela ditadura e pelo 25 de abril, a data decisiva na sua vida, as relações internacionais eram para ele, como toda a política, um domínio moral. Por isso compreendeu e cativou Machel e Mandela, quando esteve em Maputo e em Pretória. Por isso ganhou fama de falcão opondo-se à URSS na conferência sobre desarmamento em Estocolmo. Por isso pôs na ordem Karadizc quando negociou com ele o futuro da Bósnia. Por isso se tornou, mais por reflexão do que por instinto, um europeísta.  

Estrangeirado, com raízes familiares na oposição, teve durante muitos anos relações complicadas com Portugal – país “que amo mas de que não gosto, onde não quero morar mas por quem era capaz de morrer”, como uma vez me disse em Bruxelas. Com o tempo, os seus juízos foram-se tornando mais generosos. Embora não acreditasse necessariamente no progresso, em Portugal, para quem nascera em Évora nos anos 40, era uma evidência.

Ao contrário de tantos, para quem a velhice é um caminho de amarguras, José Cutileiro tornou-se, com o passar dos anos, uma pessoa mais doce, aberta e generosa. Regressou à sua vocação inicial de escritor e obteve um reconhecimento tardio que lhe importava, pois punha a arte e a poesia acima de tudo. Deixa, quase sem querer, uma obra considerável. Estou a vê-lo, dorso curvado e cabeça inclinada, a redigir com a mão esquerda, ao correr da pena, as suas crónicas semanais. Manifestação do seu espírito subtil e original, ficarão para a posteridade como um pequeno tesouro da língua portuguesa.

Sugerir correcção