Um dia triste – o anti-semitismo na mochila

A machadada que deputados do PS tentam dar na lei que concede a nacionalidade aos descendentes de judeus sefarditas é desproporcionada e absurda, além de introduzida às escondidas, por vielas inaceitáveis.

Há cinco anos, escrevi, aqui, o artigo Um dia feliz. Hoje, tenho de escrever este em protesto, pedindo travão imediato numa injustiça cozinhada às escondidas. A matéria, da maior seriedade e sensibilidade, é a devolução aos descendentes dos judeus expulsos de Portugal no século XV da possibilidade de readquirirem a nacionalidade. Os judeus estavam aqui, antes de existir Portugal. Participaram na formação da Nação portuguesa. Tiveram papel relevante. A expulsão, na onda de Castela, além de grave injustiça, é considerada por muitos historiadores um enorme erro. Em Maio de 2013, foi aprovada uma lei com aquele objecto, de que fui um dos iniciadores, como deputado. Unanimidade, no plenário. Não podia haver maior homenagem do Parlamento. Formidável é a palavra. Entrou em vigor em 2015, junto com o regulamento do governo PSD/CDS. Agora, o PS, o outro iniciador da lei, vem, pela deputada Constança Urbano de Sousa, desferir golpe mortal. Tive a notícia há dias. Foi um dia triste. Traz o anti-semitismo na mochila.

A proposta, apresentada por “os deputados e deputadas do PS”, esgrime contra alegados excessos, introduzindo nova exigência, que rebenta com a lei de 2013: impor aos requerentes dois anos de residência em Portugal – na prática, seriam mais, pois obter residência demora. Esta condição é tão flagrantemente discriminatória que seria qualificada de anti-judaica. É preciso cada um saber o que anda a fazer.

A lei actual tem, do meu lado, um pequeno histórico, que começa em 2010, quando era presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros. Fui abordado, pelo Facebook, por um descendente de sefarditas portugueses residente nos Estados Unidos, que colocou o problema em geral: se esses descendentes poderiam recuperar a nacionalidade portuguesa que fora dos antepassados e perdida pela expulsão. Respondi que sim: dependeria da decisão de cada processo, mas havia base legal. Informei o meu interlocutor que iria questionar o governo sobre o seu entendimento. Assim fiz, em Maio de 2010, por perguntas parlamentares aos ministros da Administração Interna e da Justiça do governo PS da altura.

Eu entendia que o artigo 6.º, n.º 6 da Lei da Nacionalidade já previa a naturalização aplicável a estes casos. Estipula: “O Governo pode conceder a naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1, aos indivíduos que, não sendo apátridas, tenham tido a nacionalidade portuguesa, aos que forem havidos como descendentes de portugueses, aos membros de comunidades de ascendência portuguesa e aos estrangeiros que tenham prestado ou sejam chamados a prestar serviços relevantes ao Estado Português ou à comunidade nacional.” Ou seja, os descendentes de sefarditas já podiam requerer a naturalização “como descendentes de portugueses” ou como “membros de comunidades de ascendência portuguesa”, fazendo prova da ancestralidade numa ou noutra destas condições.

Nas respostas, o ministro da Administração Interna remeteu para a Justiça e o ministro da Justiça não disse sim, nem não; mas o texto, parecendo preparado pelos serviços, punha várias dificuldades. Disse ao meu interlocutor que, havendo interessados, importava iniciar processos na Conservatória e ver como reagia, assim como o governo, perante os casos concretos. Por falta de meios, nenhum requerimento foi apresentado. Os meses passaram. O governo caiu nos primeiros meses de 2011. Entrou-se em nova legislatura.

Não esqueci o assunto, em que continuei a trabalhar. Ficara sensibilizado para uma injustiça histórica que importava resolver. Conheci histórias muito tocantes de famílias dos expulsos no sec. XV. A imprensa publicou algumas delas e outras semelhantes, depois da lei aprovada.

Em Março de 2013, o PS apresentou um projecto de lei, com Maria de Belém como primeira subscritora, que respondia directamente ao problema. Perante esta evolução muito positiva da posição do PS, cabia agarrar a oportunidade. Logo preparei outro projecto, que o CDS apresentou no mesmo sentido. Embora não indispensável, era a clarificação definitiva. A tramitação foi muito célere. A Assembleia aprovaria, sempre unânime, os dois projectos em 12 de Abril e a lei em 31 de Maio, em sessões das mais belas e gratificantes que vivi. A lei deu-nos grande satisfação, histórica e política, e muito prestígio a Portugal.

A machadada que deputados do PS agora tentam dar é desproporcionada e absurda, além de introduzida às escondidas, por vielas inaceitáveis. A norma vigente é mera extensão da norma que já existia. Diz o novo n.º 7: “O Governo pode conceder a nacionalidade por naturalização, com dispensa dos requisitos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1, aos descendentes de judeus sefarditas portugueses, através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral.” Se recordarmos o n.º 6 que citei acima, vemos que é o mesmo regime: naturalização com dispensa dos requisitos das “alíneas b) e c) do n.º 1”. O que é que se dispensa?

É dispensada a exigência de residência em Portugal, assim como conhecimento suficiente da língua. Isto faz todo o sentido. Porquê? Porque são pessoas que, por definição, vivem no estrangeiro. Integram comunidades de história portuguesa, separadas de Portugal há décadas ou séculos. Por isso, seria estúpido exigir que vivam cá ou se exprimam bem em português. É um regime antigo que vem da versão original da lei, em 1981; vem até, em termos mais estreitos, da lei anterior de 1958, a lei de Salazar.

A proposta da deputada Constança Urbano de Sousa e doutros é absurda: não faz sentido eliminar o requisito da residência, para o repor logo a seguir no mesmo preceito, embora com prazo mais curto. Isto é que integra o anti-semitismo objectivo da proposta: de todas as comunidades com ancestralidade portuguesa existentes no mundo, esta é condição anteposta unicamente aos judeus. É a tentativa de uma lei com medo dos judeus de ascendência portuguesa e para sua discriminação e rejeição. Seria uma lei má, inaceitável.

Não podemos confundir o sucesso da lei com mercantilismo. Mas o problema alegado pode ser real. Pode acontecer, em qualquer país, nos regimes de naturalização ou similares. Tem bons remédios, previstos desde o princípio. Primeiro remédio: melhorar os traços de ligação à comunidade nacional, já inscritos na lei e no regulamento. As nossas comunidades judaicas podem colaborar na definição de termos mais exigentes, garantindo a genuinidade dos pedidos e impedindo o comércio da nacionalidade. Segundo remédio: apurar o filtro na instrução dos processos, em que já participam as comunidades judaicas, as maiores interessadas em não assistir à desprestigiante decadência processual. Terceiro remédio: a diplomacia junto dos Estados de onde partam as acções mercantis mais agressivas, eticamente reprováveis. Quarto remédio: o indeferimento. Ponto final. O regime de naturalização (artigo 6.º) é discricionário. Se os processos não estão claros e bem instruídos, ou cheiram a esturro, devem ser indeferidos. Ou ficar a aguardar melhor oportunidade… O “mercado” perceberá a mensagem.

Em suma: o que pode ser necessário não passa pela alteração da lei. A impor-se uma afinação, bastará mexer, em diálogo com as comunidades judaicas, no decreto-lei que regulamenta a lei. E pode nem ser preciso. Poderá bastar acção política e administrativa, atenta, diligente e competente.

Qualquer Administração competente tem de saber separar o trigo do joio. Não pode pôr-se o justo a pagar pelo pecador. Não pode discriminar-se. Não pode destruir-se o dia feliz. A lei aprovada deu muito prestígio a Portugal. Esta proposta mergulha-nos na má fama.

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