Crise, envelhecimento, velhice: sinais de algum mal estar civilizacional?

A crise sanitária expôs de forma brutal a relação vida/morte. Associou velhice e morte. Deu visibilidade a realidades das velhices em instituição. Realidades que nos chocaram. A entrada numa instituição marca um último tempo, tempo de espera do fim. E esse fim escancarado, solitário, abrupto, pôs-nos face à nossa qualidade de seres finitos.

Podemos admitir que sim. A pirâmide etária é cada vez menos pirâmide. Nascem poucas crianças. Temos cada vez mais velhos. A esperança de vida continua a sua curva ascendente. As gerações coabitam cada vez menos. A urbanização do território, os novos movimentos migratórios, a participação das mulheres no mercado de trabalho, a insegurança face ao emprego e aos rendimentos, traduzem e produzem mudanças nas formas de viver, de conviver e de envelhecer. A velhice é apreendida numa dicotomia profundamente redutora – a dos autónomos e a dos dependentes. O valor da velhice varia em função do grau de autonomia e a “dependência,” verdadeira ou falsa, produz clivagens, estigmatiza, desvaloriza. A velhice é percecionada como um encargo, cada vez mais pesado, que a crise provavelmente reforçou.

Ora, a análise compreensiva da velhice não é dissociável da análise da recomposição das diferentes fases do ciclo de vida. Vivemos mais tempo. A organização de mais tempo de vida reflete mudanças na relação com os outros, com a família (coexistência de quatro gerações), com o trabalho, com a formação, com o lazer, com a criação… Induz percursos marcados pela pluralidade/complexidade dos papéis e das identidades. É cada vez mais possível poder ser-se simultaneamente filho(a),mãe/pai, avó/ avô, bisavó/bisavô e profissional no ativo. A reforma tem um tempo longo no horizonte. A velhice para o trabalho antecede em muito a velhice dos anos do fim da vida. Há uma dessincronia crescente entre uma e outra.

Inscreve-se aqui a lógica de uma cultura de envelhecimento ativo padronizada desde os anos 90, com claros efeitos na valorização das competências e interesses dos reformados/pensionistas. E bem assim dos seus papeis na sociedade, que são muitos: na família, na cultura, no voluntariado, nos serviços em geral. Pese embora o efeito perverso a que deu lugar, marcando uma clivagem entre gerações pós reforma (os idosos e os seniores). Os idosos associados a fragilidade e dependência, os seniores autónomos, participativos, culturalmente diferenciados, numa lógica dos novos reformados.

De qualquer forma, as velhices de hoje incorporam duas décadas de afirmação e consolidação de um estatuto de pós reforma pelos papeis desempenhados na sociedade. Como sujeitos, não como objetos de cuidados. Procuraram uma identidade, preenchendo o vazio de sentido da conquista de mais anos, anos do pós reforma. O significado do trabalho, eixo estruturante do ciclo de vida, relativizou-se.

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Um pouco por todo o mundo, a covid-19 isolou ainda mais os idosos Paulo Pimenta

São referências das velhices dos mais e menos jovens de hoje, num futuro próximo. As quais serão resultado de percursos marcados pelos velhos riscos da existência e da eficácia dos sistemas de protecção social, quer na vertente preventiva como na reparadora. Proteção face a velhos riscos que, entretanto, vêm configurando novas e múltiplas formas de incerteza e risco. O esticar do tempo entre conclusão de formação e entrada no mercado de emprego, a escassez de oferta de emprego por efeitos da sua radical transformação, as descontinuidades dos percursos profissionais e consequentes incertezas de rendimentos, as situações de saúde associadas à turbulência e/ou precariedade das condições de existência, designadamente, o seu impacto na ultima etapa do ciclo de vida, constituem talvez o maior desafio de sempre ao papel das políticas sociais na “formatação” do ciclo de vida. O que não é improvisável. Exige o melhor do que hoje sabemos sobre previsão e controle de riscos. Num mundo em mudança acelerada e profunda incerteza.

As opções individuais dependem em muito das oportunidades que, de forma organizada, são oferecidas no contexto em que cada um vai construindo o seu percurso e a sua identidade. Envelhecer permanecendo activo só pode ser entendido na perspetiva de “uma vida inteira"
Walker, Alan

Velhice e velhices, questões da proteção social

A crise sanitária expôs de forma brutal a relação vida/morte. Associou velhice e morte. Deu visibilidade a realidades das velhices em instituição. Realidades que nos chocaram. Velhices, invisíveis, contrastando com a visibilidade das histórias de envelhecimento ativo que configuram tempos de escolhas, de realização pessoal, de procura de marca “ser socialmente útil”, onde a morte está distante, na sombra, não é visível. A entrada numa instituição marca um último tempo, tempo de espera do fim. E esse fim escancarado, solitário, abrupto, pôs-nos face à nossa qualidade de seres finitos.

E levou-nos a questionar o universo institucional e o seu papel no modelo de proteção social da velhice.

Questionamento, reação de escândalo, desconforto e critica, sem, todavia, parecer perspetivar qualquer alteração substantiva. Provavelmente porque estas respostas institucionais representam soluções não tanto dos problemas dos mais velhos, mas muito dos problemas das respetivas famílias (ou da falta delas), em contextos onde escasseiam alternativas de qualidade, no lugar e no tempo certos, que tenham em conta a pluralidade dos fatores que estão na génese dos problemas conducentes à entrada em instituição. Questões que se cruzam, bastas vezes, com os défices do habitat das pessoas mais velhas, com a inexistência de intervenções a este nível, bem como de serviços de apoio domiciliário, que associem apoio social e saúde de qualidade. A par da pressão do setor institucional na lógica de tudo em um, apresentando espaços modernizados que supostamente recriam um ambiente familiar, mas que na realidade não evitam a desapropriação, o desenraizamento do espaço ligado à história de cada um. E que, por outro lado, suscitam questões sobre a qualidade dos cuidados prestados.

De facto, cabe à proteção social da velhice garantir qualidade de vida às pessoas mais velhas fragilizadas por razões de saúde, sociais e/ou económicas. Tem como eixo estratégico, há muito consensual, a importância da sua não desinserção da comunidade. O que determina a necessidade de um modelo de intervenção em rede que não seja fraturante, mas globalizante, que atenda à pessoa na sua totalidade (se assim se pode dizer), sem deixar de tratar de forma mais especializada as situações que o exigem e cuja especificidade aumenta ao ritmo da complexidade crescente das situações que afetam fins de vida cada vez mais longos.

Importa desenhar um quadro coerente de respostas, sustentadas no conhecimento disponível, orientadas em função da qualidade das intervenções, privilegiando a inserção e as relações com a comunidade pela cooperação com outros, com objectivos claros da intervenção/missão que a cada um compete. Ou seja, a capacidade das respostas instaladas a nível local deve resultar do conhecimento das necessidades, da complementaridade das experiências e dos saberes, num sistema aberto, que privilegie a inovação, que contrarie as formas de exclusão e valorize as capacidades de autodeterminação daqueles a quem estão ao serviço. Missão que exige aprofundamento conceptual, designadamente sobre autonomia, dependência, défice e incapacidade. A clarificação do que queremos é essencial para avaliar o que fazemos.

Em suma, precisamos de nos libertar de formas de assistencialismo que perduram, traços culturais de realidades longínquas, representações sociais ancoradas nos receios da decrepitude e da morte que ao longo dos tempos permanece subjacente ao binómio valorização/desvalorização da velhice.

É urgente refletir sobre os pressupostos, a substância da proteção da velhice. Se queremos formatar a velhice como dependente ou libertá-la para mais ser, viver mais e viver melhor, respeitando o sentido que cada um lhe dá. Ser objeto dos cuidados dá mais tempo de vida, ser sujeito dos cuidados dará mais qualidade de vida, e será certamente mais saudável. .

Trata-se de acautelar, evitar estigmatizar, segregar, avivar medos ancestrais que tolhem e amesquinham o ambiente relacional das sociedades, atuais e futuras.

Esta será a herança que está ao nosso alcance construir para as velhices futuras. Apesar da crise e talvez por causa da crise

Lembro o testemunho de uma professora primária francesa que morreu com 120 anos. À volta dos seus 115 anos foi entrevistada para a RTF. À pergunta “que mensagem deixa aos mais novos”, respondeu: “Que ousem viver e não tenham medo de morrer.”

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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