O décimo oitavo ODS

Combater as fake news impõe-se como um décimo oitavo objectivo do desenvolvimento sustentável, transversal aos demais, a ser considerado e incluído na luta por um planeta mais sustentável e justo

O ano era 1992 e 178 países enviaram representantes para a Cimeira do Clima, a Rio-92, para debater medidas capazes de frear a degradação do planeta. Em agenda, a exploração irracional de recursos e um futuro incerto. Estive lá como voluntária. Eu e centenas de jovens assistimos entusiasmados ao início do que, imaginávamos, poderia ser o marco de um porvir mais sustentável e mais humano. Foi lento o processo. Vinte anos depois, o debate sobre “o futuro que queremos” voltou ao Rio de Janeiro, de onde saiu o rascunho dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) oficialmente adotados pelas Nações Unidas em 2015, três anos depois.

Metas estipuladas para a esse futuro chegarmos temos (check); iniciativas lançadas em todo o planeta também (check); líderes mundiais comprometidos (alguns, check). Infelizmente, a to-do-list continua enorme porque a velocidade de implementação é lenta e porque, à medida que avançamos para mitigar problemas, surgem novos num mundo em constante mutação, acelerado pela conexão digital, transformado pela inteligência artificial, agora mais desconcertado por uma pandemia. Os obstáculos mudam de lugar e parecem não mais caber nos 169 parâmetros por trás dos 17 ODS. A maior parte das novas barreiras emerge da digitalização e da livre circulação de conteúdos, confiáveis e mentirosos, da internet e da deep net. Falo das fake news.

Há apenas dois anos, um fórum das Nações Unidas realizado em Paris reunia representantes do mundo todo para discutir segurança digital e desinformação. Sob o título “Internet of Trust”, o evento foi aberto, como de costume, pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, com palavras que continuam muito atuais. “Não precisamos pesquisar muito além das manchetes para percebermos como a internet e as redes sociais podem ser usadas para dividir e até radicalizar as pessoas – alimentando a desconfiança, reforçando o tribalismo e fomentando o ódio”, disse Guterres. Já estava em pauta o mal das notícias inventadas que ganha escala global e ameaça todos os dezassete ODS.

Podemos perceber isso claramente quando analisamos algumas das 169 metas que sustentam os ODS. O objetivo número treze, por exemplo, que trata da mudança climática, resulta de uma opinião unânime da comunidade científica estudiosa do assunto. A humanidade está tornando o planeta um lugar mais quente e há provas disso por toda parte. Quando o tema foi levado à consideração pública, não havia tantas vozes barulhentas e descoladas da realidade pregando o contrário. Lidamos hoje com a inacreditável insurgência de terraplanistas, para ficarmos no exemplo mais óbvio sobre como o absurdo viabiliza-se.

O objetivo cinco, que defende a igualdade de gênero, lembra-nos que seu cumprimento depende do fim de toda forma de violência contra a mulher. Requer medidas contra casamentos prematuros e forçados perpetuados por certas tradições não mais aceites. Clama pela valorização do trabalho doméstico não-remunerado e pela participação plena das mulheres em cargos de lideranças. Estamos, portanto, falando de ações que necessitam também de um processo de consciencialização dos atores envolvidos e que podem ser prejudicadas, destruídas ou desvirtuadas pela ação criminosa dos propagadores de fake news. Campanhas difamatórias e mentirosas contra líderes mulheres disseminam, nas entrelinhas ou nem tão sutilmente assim, a ideia de que elas não deveriam ocupar tais postos.

Como um vírus ainda mais contagioso, a desinformação destrói o sistema de defesa montado para proteger os mais vulneráveis. Ela penetra nas células em construção para deformá-las se não for combatida desde a mais básica educação. Esse parasita instala-se para fortalecer uma certa mentalidade resistente aos avanços.

O objetivo 16, que defende Paz, Justiça e Instituições Fortes, esbarra no mal da desinformação porque prega o desenvolvimento de instituições transparentes, ponto de partida essencial para que o acesso à informação (produzida e detida pelo Estado, seus representantes, e também pelo que seja de interesse público mas esteja em mãos privadas) seja efetivo e confiável. Dados fora de contexto e teorias da conspiração, recursos normais na gênese da fake news, podem pôr em cheque as instituições.

Não haverá futuro sustentável se as vozes contrárias ao bem comum continuarem ganhando espaço para manipular diversas opiniões. Não construiremos uma sociedade de fato inclusiva se lideranças puderem repetir impunemente mentiras e estas forem propagadas por seus seguidores para prejudicar as minorias. É uma questão de escala. 

Estamos conscientes dos danos gerados pela desinformação e pela confusão crescente entre fatos e opiniões. Não seria exagero afirmar que todos corremos riscos diretos e indiretos, se levarmos em conta os resultados de eleições de radicais com discursos cada vez mais autoritários, desarrazoados e indiferentes ao sofrimento humano se o ser humano prejudicado não lhe for caro.

Hoje, acompanhamos ávidos a corrida mundial por uma vacina contra a covid-19. Há mais de uma centena de projetos em estágios distintos, alguns já iniciaram os testes em humanos. Tal solução tão desejada, no entanto, arrasta junto desafios de outra natureza.  Uma reportagem recente do New York Times, por exemplo, lembra que o fabrico das seringas em quantidade suficiente para atender a população de 320 milhões de americanos pode surgir como um nó logo adiante. Ainda repercute em nossa memória a decisão de vários países que proibiram a exportação de bens de primeira necessidade para o combate à covid-19. Máscaras e luvas descartáveis ainda são produtos escassos, especialmente em países mais pobres da África. Encontrar a vacina, produzi-la à escala mundial, providenciar todos os acessórios necessários para levar adiante a imunização em massa é só uma parte da história. Precisaremos também de uma campanha futura de vacinação que, de certo, irá esbarrar nos grupos dispostos a disseminar fake news sobre vacinas, plantando dúvidas. 

Diversos estudos acadêmicos mostram o quanto o medo é eficaz para enfraquecer uma causa tão importante. A divulgação de um estudo posteriormente desmentido, que associava o autismo a uma vacina, repercute até hoje no imaginário de certos grupos sociais que preferem não vacinar seus filhos, elevando o risco do retorno de doenças já erradicadas. Infelizmente, corrigir a desinformação é uma tarefa muito mais complexa do que imaginamos. Não basta apagá-la, alertam investigadores de áreas como Psicologia, Comunicação e outras ciências humanas. Há uma série de conexões estabelecidas em torno de falsas crenças que resultam em visões do mundo. Trata-se pois de processo cognitivo que, uma vez iniciado, impõe obstáculos à sua desconstrução. A visão de mundo é o lugar de onde observamos a vida. Quando essa visão se estrutura em torno de mentiras ou crenças erradas, fica muito difícil modificá-la, daí a urgência desse trabalho de vacinar contra fake news começar o mais cedo possível. 

O combate às fake news fez surgir soldados importantes nesse campo de batalha. Agências de fact checking, como um reforço estrutural ao fortalecimento do jornalismo profissional, fazem a sua parte. Programas de literacia mediática nas escolas são prioridades nessa guerra. Vozes erguem-se aqui e ali contra os absurdos, mas fazer da luta contra as fake news um ODS abriria oportunidades para ações mais coordenadas mundo afora. O décimo sétimo ODS, aliás, esclarece que o sucesso de todos os objetivos depende da união de governos, sociedade civil e setor privado. É um call to action para que as empresas privadas assumam sua parte na luta de todos.

Desnecessário evocar aqui exemplos de fake news que atravancaram em maior ou menor grau o combate à atual pandemia. Por falar nisso, o que as instituições e empresas ligadas à Ciência e à Saúde estão fazendo desde já para comunicar melhor com a sociedade a fim de construir a confiança capaz de abafar a minoria fanática e barulhenta quando chegar a hora da desejada vacinação coletiva?

Combater as fake news impõe-se como um décimo oitavo ODS, transversal aos demais, a ser considerado e incluído na luta por um planeta mais sustentável e justo. Essa é uma causa que todos devemos e precisamos abraçar.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção