Um Bolsonaro e dois pães de Mafra

Depois de tantos anos a morar em Mafra, costumo dizer que eu e a minha mãe somos duplamente saloios: saloios do Brasil e saloios de Portugal. Cá estamos bem, mas lá estamos mal.

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Reuters/ADRIANO MACHADO

Há 15 anos, no dia 17 de Abril de 2005, respirávamos o ar de Lisboa. Lembro-me do estranho sabor da água – estava acostumado à água filtrada em filtros de barro e, com apenas 12 anos, não tinha viajado ainda o suficiente para saber que nem todas as águas tinham sabor à “água de filtro”.

Lembro-me também dos cortes nos lábios causados pelo frio incomum – sempre tive lábios fartos, natural das minhas origens e misturas genéticas (característica, aliás, que rendeu muitos episódios de bullying acompanhados com o quotidiano “volta para a tua terra” e com o despretensioso cuspo nos sapatos). A minha educação e algumas dívidas corriqueiras foram as principais razões para deixarmos a terra das telenovelas e das favelas – segundo os meus colegas de escola, não havia muito mais para além destas duas coisas... – e do Pelé. Eles não sabiam que eu só assistia telenovelas mexicanas, nunca tinha estado em nenhuma favela e não gostava de futebol.

Em 2005, o Brasil era presidido por Luiz Inácio Lula da Silva e Portugal tinha acabado de eleger José Sócrates como primeiro-ministro. Nunca me encontrei com Lula mas, 15 anos depois, tive uma longa conversa com José Sócrates a propósito de um projecto académico que está em desenvolvimento. E apesar de o projecto não estar directamente relacionado com o assunto deste texto, representa um momento de viragem na forma como eu passei a encarar assuntos políticos e de participação cívica. Gostava que todos soubéssemos o que isso é.

Em 2018, lá estava eu: luso-brasileiro, recém-licenciado, a trabalhar na minha área e completamente destroçado com tudo o que se passava no meu país de origem. Depois da eleição nos EUA do senhor que hoje nos diz para injectar desinfectante nas veias, chegava a vez do Brasil: concluído o já admitido golpe por parte de Michel Temer, era novamente ano de eleições. Entre os candidatos, já se sabia que o escolhido nunca poderia ser do Partido dos Trabalhadores (PT) e que teria de “ir contra o sistema”. E, assim, justificava-se a preferência de um terço da população brasileira.

Eleito pelo WhatsApp, Jair Messias Bolsonaro (aka “mito”) recebeu a faixa presidencial de, talvez, um dos mais astutos presidentes da história do Brasil. Os mais atentos que assistiram à posse viram o que verdadeiramente acontecia: um leão já satisfeito entregava a carcaça de uma zebra a uma hiena. Ora, todos nós sabemos que os leões e as hienas matam para se alimentar. O que até então não sabíamos, e passamos a saber, é que as zebras também podem oferecer-se como refeição.

Passado pouco mais de um ano de um plano económico infrutífero, de cortes na educação, de censura na cultura e de uma série de situações graves e risíveis dos filhos 1, 2, 3 e 4, chega a covid-19 e sai o Sérgio Moro. No entretanto dos mortos pelo vírus ouve-se “Eu não sou coveiro”, “E daí? Sou Messias mas não faço milagres” e “Vou fazer um churrasco para 30 pessoas, mas está todo o mundo convidado”. Bem, honestamente e dentro do perfil animalesco, estas afirmações já eram de se esperar. Afinal, este é o mesmo ser humano que disse que as mulheres nascem porque os homens “fraquejam” (2017), que disse que há mulheres que não merecem ser violadas (2003 e 2014), que disse que as mulheres têm de ganhar menos do que os homens (2014), que disse que os negros não servem nem para procriar (2017), que disse que os gays têm de morrer (2011) e que o erro da ditadura foi torturar e não matar (2008 e 2016).

É como se o Kafka tivesse escrito uma tragédia grega com a ajuda do Walcyr Carrasco. Depois de tantos anos a morar em Mafra, costumo dizer que eu e a minha mãe somos duplamente saloios: saloios do Brasil e saloios de Portugal. Cá estamos bem, mas lá estamos mal. Isso porque o Bolsonaro está lá e nós estamos aqui, enquanto há lá uma parte de nós que não nos deixa estar em paz aqui.

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