A viagem nunca acaba dentro de nós

E nós seremos eternas crianças, a sonhar aventuras, a precisarmos de fugir (um bocadinho) de casa. Tudo para reaprendermos que se é grande o prazer de ir, é grande o prazer de voltar, conscientes de que a viagem tanto começa dentro de nós como nunca acaba.

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Ilhéu de Monchique, o ponto mais ocidental da Europa, ao largo das Flores, Açores. Enric Vives-Rubio

Sentado à janela, olho para a cidade mas o que vejo são os caminhos que serpenteiam pela serra de Monchique, habituada à destruição e ao renascimento, à fragilidade e à coragem. Vejo o céu e a terra e o mar e o fogo no esplendor do Caldeirão do Corvo ou nas Flores por dentro e por fora, a beleza mitológica da minha costa alentejana e vicentina feita passo a passo, a ilha que é um deserto que é uma praia que é um mundo da Boa Vista de Cabo Verde, as profundezas e ascensões das Astúrias, tão humanas quanto desmesuradas.

Acontece-me muito, e a todos os que viajam, claro. Tal como eu, tu sabes como as viagens ficam para sempre dentro de nós. Incrível como temos tanto espaço cá dentro onde cabe um mundo todo, talvez um universo todo, não é? Às vezes, estou a trabalhar em algo mais rotineiro, ou sentado numa esplanada, ou só a andar por aqui e ali e... zás! Começo a assobiar o Tom Sawyere a viagem (re)começa cá dentro.

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Na serra de Monchique Luís J. Santos

Passo pelo sorriso triste de Rina de Hiroxima e ela diz-me, 16 anos, olhos nos olhos, museu de bombas nucleares atrás de nós, “Frágil, sinto-me frágil” (sim, como a canção, assim mesmo). Vejo a alegria da dona Inês Inês e do seu marido José Inês, que aos 80 anos me mostraram como se faziam barretas do outro mundo e fechaduras para uma ilha de portas abertas (já morreram os dois, mas vivem na minha memória e na de muita gente). Sento-me com o Adriano Miranda num hotel de Moscovo, no mesmo em que ele se sentou com os avós em jovenzinho, há quatro décadas - os olhos do Adriano são um Volga de emoções. Vejo-me na lama com a Carla Ribeiro, vemo-nos a despencar-nos na neve, faço zoom aos meus companheiros de viagem (nunca caminhamos sozinhos), rio-me anos e anos a fio com o Miguel Madeira a dançar numa discoteca mui alemã das Canárias, perco-me nos bosques com o Enric, recordo o Simão anos a fio a ajudar-me a planear viagens. Alguém esquece os seus amigos de aventuras?

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Viajar enche-nos de mundo de tal forma que às vezes ponho os chinelos que comprei na Madeira e por aí vou, enterrando-os nas santas águas e areias de Porto Santo (uma beleza, uma paixão pessoal), ou as botas Tabi japonesas de rapaz-cavalo, e ando pela cidade com os pés a viajar por Quioto. Mas, na verdade, é apenas criancice. Sei bem que para viajar, a qualquer momento, só precisamos da memória e/ou de um guia que converse connosco, mesmo que apenas papel de um jornal ou de uma página online.

Haverá quem ache injusto tudo isto: nós viajamos, o leitor lê – mas não é bem assim: são tantos os leitores que nos viajam, ainda há pouco me deslumbrei com a Nicarágua de Francisco Antunes, e com tantos outros, até no Instagram. Somos todos viajantes que somos leitores, leitores que somos viajantes, uns heterónimos que se prolongam no tempo e no espaço.

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Em Porto Santos Luís J. Santos

Um dia até descobri que a aldeia de Pessoa era o coração de Lisboa. Anos a calcorrear estas que são também as minhas ruas e nunca as vira assim, acompanhado de tantos Pessoa. Damos voltas ao mundo e acabamos sempre por redescobrir a nossa rua, a nossa casa – afinal, já diz o dito, o mundo é a nossa casa.

E nós seremos eternas crianças, a sonhar aventuras, a precisarmos de fugir (um bocadinho) de casa. Tudo para reaprendermos que se é grande o prazer de ir, é grande o prazer de voltar, conscientes de que a viagem tanto começa dentro de nós como nunca acaba.

É assim que enquanto olho para Lisboa consigo rever o ponto mais ocidental da Europa (o nosso ilhéu de Monchique), apurar o ouvido e ouvir ao mesmo tempo:​ “Frágil, sinto-me frágil. Nós achamos sempre que somos fortes, parece que é sempre tudo para sempre. Mas depois isto acontece e tudo acaba, tudo desaparece. A beleza é destruída de repente. O ser humano não é muito forte. (...) Temos que nos unir para que isto nunca mais aconteça no mundo” (Rina Arai, estudante de 16 anos em 2016, Museu e Memorial da Paz de Hiroxima).

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Rina Arai, estudante de 16 anos em 2016, Museu e Memorial da Paz de Hiroxima Luís J. Santos

Luís J. Santos é editor da Fugas online. No PÚBLICO desde 1999, com várias entradas e saídas (tem bichos carpinteiros). Colaborador da Fugas desde 2007, foi responsável pelo lançamento do primeiro site da Fugas. Depois de mais umas idas-e-voltas, é ele o responsável pela Fugas online. Também escreve.

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Rússia, o descanso do guerreiro numa paragem de um grande cruzeiro pelo Volga, olhos nos olhos com o Adriano Miranda Adriano Miranda
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