Refugiado em mim

Testemunho de Dino D’Santiago, músico. “Numa altura em que a humanidade atravessava um período onde as políticas de extrema-direita ganhavam cada vez mais espaço nos nossos terrenos sociais, que se erguiam muros e fronteiras como que bloqueando a entrada de ‘extraterrestres’ refugiados de outros planetas, eis que o nosso planeta decide dar uma bofetada de luva branca e desterra-nos para dentro de nossas casas.”

Para vos dizer a verdade, nunca me senti tão conectado com o momento presente quanto agora.

Vinha de vários meses numa fast lane, com milhares de quilómetros acumulados, num corpo que tantas vezes moldou fósseis em aviões, comboios ou autocarros por esse mundo fora. Repeti várias vezes para mim mesmo: “Mal seja possível, vou parar durante um mês, estacionar na minha ‘caixa do nada mental’ e só ser.”

Eis que, por um motivo de força maior, fui obrigado a parar, mas o globo todo também. Acabaram os segredos das viagens mensais a Londres, terminou o sonho de editar o álbum em Cabo Verde, honrando, assim, o país que inspirou toda esta caminhada.

Estou de quarentena desde o dia 8 de Março, e nestes quase dois meses de isolamento social e sem poder fazer uma das artes que mais amo, a de pisar no palco físico e real, apercebi-me do quão abençoado sou por viver num tempo em que tenho a liberdade de cantar e contar a minha história sem censura. Mesmo preso dentro das quatro paredes que me cercam, é-me possível sentir quase que fisicamente o impacto positivo que o álbum Kriola teve em milhares de pessoas espalhadas pelo mundo.

Numa altura em que a humanidade atravessava um período em que as políticas de extrema-direita ganhavam cada vez mais espaço nos nossos terrenos sociais, que se erguiam muros e fronteiras como que bloqueando a entrada de “extraterrestres” refugiados de outros planetas, eis que o nosso planeta decide dar uma bofetada de luva branca e desterra-nos para dentro de nossas casas. Será que quando sairmos deste isolamento olharemos para a situação dos refugiados de guerra da mesma forma? Será que a nossa empatia para com a sua história terá mais compaixão? Desesperamos por estarmos um mês barricados nas nossas casas, nos nossos lares, enquanto os mares que nos cercam carregam milhares de almas desejando um simples canto nosso, onde encontrarão um pouco de paz, aconchego e esperança, para o deslumbrar de um futuro que, por mais que seja incerto, transporta a crença no Amor Maior.

Enfrentamos tempos difíceis para a nossa economia e indústria das Artes, todas as suas manifestações estão afectadas pelo menos até ao final deste incerto ano de 2020. A Música, que é a categoria em que me incluo, sofrerá talvez a maior transformação no que diz respeito ao seu modus operandi. Será necessário a todos nós repensarmos as nossas estratégias de projeção e comunicação dos nossos trabalhos e contar, de verdade, com um cenário mais positivo no ano de 2021. Mas, para vos ser franco, não trocaria uma vida em isolamento social por um dia na pele de um refugiado de guerra.

Que esta quarentena torne a humanidade 5% mais consciente do todo de que fazemos parte, e tudo isto terá valido a pena. Nunca a frase “ask not what your country can do for you, ask what you can do for your country” (J.F.K.) me fez tanto sentido.

Um abraço forte e profundo para todos os colegas de profissão e suas equipas, que são a nossa família de estrada. Fica aqui a certeza de que a próxima vez que pisarmos um palco, com um público bem próximo de nós, sentiremos de verdade que devemos ser gratos por cada segundo vivido a fazer o que mais amamos!

One Love
Dino D’Santiago

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