A viagem das viagens

Quem ama as viagens pela experiência do insólito, pela inteligência do conhecimento ou pela liberdade que o espaço concede, não pode perder o transiberiano.

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Katrin Sauerwein/EyeEm

Chamam-lhe “a viagem das viagens” e não apenas por presunção ou por cedência à trivialidade das mensagens publicitárias. Se viajar é conhecer o mundo, não há melhor forma de sentir a sua vastidão que na longa travessia da Sibéria de comboio. De Moscovo a Vladivostok ou nas derivações para a Manchúria ou para a China via Mongólia são no mínimo 8000 quilómetros. Nove dias de marcha ininterrupta, cruzando a fronteira da Europa nos Urais, entrando na interminável estepe siberiana, passando o Baical, o maior lago de água doce do mundo com os seus 640 quilómetros de extensão, entrando no estranho mundo da República Buriácia, cruzando as culturas europeias, uigures, cossacas, mongóis e chinesas, queimando fusos horários, passando rios gigantes, florestas frondosas ou desertos inquietantes. O transiberiano é a “viagem das viagens” e ninguém sai imune da sua aventura.

A Fugas fez a sua variante pela Mongólia em Junho de 2008 e deu conta dessa experiência em duas longas reportagens publicadas a 12 e 19 de Julho. A primeira etapa levou-nos de Moscovo a Irkutsk, nas margens do Baical, o lago onde cabem as águas de todos os lagos doces do planeta. Parámos em Kazan, nas margens do Volga que inspirou uma parte substancial da alma cultural da Rússia. Seguimos para Yekaterinburg, nos Urais, onde a marca da Europa se começa a diluir no cruzamento das influências asiáticas – e onde os soviéticos assassinaram barbaramente a família do último czar, Nicolau II. Prosseguimos para Novosibirsk, uma cidade gigantesca, erigida sob a égide da industrialização e da necessidade de manter a ciência militar o mais longe possível. E acabámos em Irkutsk, a cidade de madeira, bela, única e nostálgica, como se conservasse a saudade depositada nas suas ruas por gerações sucessivas de exilados.

Mas é no comboio, no seu arrastar monocórdico pelos carris, hora após hora, dia depois de dia, que se sente a essência da viagem e se percebe a origem etimológica da Sibéria (entre o mongol ‘siber’, belo, puro, e o tártaro ‘sibir’, terra adormecida). Planícies intermináveis, datchas perdidas, rios tumultuosos desenrolam-se numa rota que acompanha a curvatura da Terra, se aproxima das latitudes das noites brancas e se repete num ritual de sons, luzes e escuridão para nos fazer entender pela languidez do tempo e o ritmo da marcha que na imensidão da Sibéria cabem a Europa e os Estados Unidos (Alasca incluído). Nessas horas que convidam o olhar a perder-se no horizonte é impossível não recordar a história da colonização siberiana, os exílios forçados do czarismo ou o brutal Gulag soviético. A lonjura usada como uma grade de ferro, a solidão das estepes geladas servidas como castigo.

Depois do Baical, Ulan Ude surge como um marco de separação que antecipa o começo da Ásia. Na comida, nas fisionomias, no espaço urbano, nos templos budistas que proliferam. Pouco depois, o comboio inflecte para a Mongólia, a paisagem dissolve-se na aridez e depois da capital, Ulan Bator, arrasta-se nas areias quentes do deserto do Gobi, a 2000 quilómetros do destino final. Talvez não haja luz mais bela na Terra do que aqui, principalmente ao fim da tarde. Tão bela e nítida que quando entramos na China parece termos regressado a um mundo suficientemente normal para já o termos percebido nos livros ou nas imagens da televisão. Quinze dias depois do primeiro silvo do comboio em Moscovo, chegamos a Pequim, moídos do corpo, perplexos na inteligência e fascinados na emoção. Quem ama as viagens pela experiência do insólito, pela inteligência do conhecimento ou pela liberdade que o espaço concede, não pode perder o transiberiano.

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