Violência doméstica: proteger as vítimas é um dever – não uma opção

A proposta que o Governo apresentou ao Parlamento partiu da análise cuidada das diferentes soluções identificadas no direito comparado e traduz um esforço de adequação ao quadro constitucional nacional de uma resposta judiciária que se quer efetivamente articulada.

Diz o escritor Mia Couto que uma casa morre se não for habitada com amor. Imaginemos um lar sem afeto, onde reinam a discórdia e a violência. Será, porventura, o lugar mais próximo daquilo que comumente é descrito como o inferno.

Milhares de mulheres em todo o mundo são diariamente expostas a humilhações e atos violentos por parte dos seus companheiros. Para elas, a casa não é um sítio de paz e de segurança, e sim um território de guerra.

Em Portugal, são mortas três mulheres por mês, vítimas de violência doméstica. Em quase metade dos casos existiu uma denúncia prévia.

Não se sabe quantas delas pereceram por terem sido localizadas pelos agressores em resultado da ausência de articulação entre as decisões dos tribunais criminais – limitados à pronúncia de medidas penais – e dos tribunais de família e menores que, no desconhecimento do estatuto de proteção já acordado à vítima, permitem que o agressor aceda ao seu lugar de refúgio, com fundamento no direito a contactar com os filhos que com ela coabitam.

A circunstância de os aspetos jurídicos subjacentes ao conflito poderem ser avaliados por órgãos jurisdicionais diferentes, com a consequente fragmentação da resposta judiciária, potencia decisões divergentes ou inconciliáveis.

Esta desarticulação tem sido assinalada não só internamente, pelas organizações que lidam com a violência doméstica, como também externamente, pelo Grevio – Grupo de Peritos do Conselho da Europa, que monitoriza o modo como os Estados-membros definem e dão execução às políticas públicas nesse domínio.

No seu mais recente Relatório sobre Portugal, o Grevio reitera a observação de que nas decisões sobre os direitos de guarda e visita os tribunais de família não tomam suficientemente em conta os direitos das vítimas nem o impacto sobre as crianças da violência contra as mulheres, sublinhando a necessidade urgente de os organismos oficiais envolvidos, designadamente os juízes de família, seguirem uma abordagem coordenada.

Essa recomendação, feita por mais do que uma vez, não encontrou até hoje uma resposta adequada por parte das autoridades nacionais. Não porque os juízes portugueses recusem a coordenação, mas porque não existe, ainda, um instrumento que permita assegurá-la de um modo efetivo e sistémico.

Esta é uma matéria em que a boa vontade mostrou não ser tudo…

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Só em 2019 morreram 35 pessoas em Portugal vítimas de violência doméstica Miguel Manso

Ao longo do ano passado, 35 pessoas perderam a vida em contexto de violência doméstica. Entre janeiro e dezembro, registaram-se 30 femicídios em relações de intimidade e familiares e 27 tentativas de femicídio.

Desde 2004, ano em que tiveram início as estatísticas que contabilizam as mortes de mulheres em contexto de violência doméstica, 531 mulheres foram mortas por alguém que conheciam intimamente. Outras 618 escaparam a tentativas de homicídio.

A maior parte das mortes acontece em contextos onde já existia violência conhecida por familiares, vizinhos, amigos e até das instâncias formais de controle, “sem que tal tenha sido suficiente para a prevenção da revitimização e consequente femicídio”, como se lê no relatório da Organização das Mulheres Assassinadas (OMA).

Não podemos sobressaltar-nos apenas quando ocorre mais um homicídio ou é trazido à luz um novo caso de ofensas corporais graves.

Mais do que o ocasional e efémero sobressalto, impõe-se a determinação da ação preventiva que reduza as oportunidades de revitimização e assegure, no momento em que ela é necessária, a proteção da vida e da integridade física e moral de todas as vítimas.

Proteger as vítimas não constitui mera opção. É um dever indeclinável do Estado, que não pode desconsiderar a tutela da personalidade da vítima, assim como a proteção tempestiva devida às vítimas menores que, amiúde, experimentaram desde muito cedo uma existência marcada pela violência e pela tragédia.

A criação de Gabinetes de Atendimento a Vítimas de Violência de Género em Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP), em parceria com organizações não governamentais vocacionadas para o apoio às vítimas, foi um contributo para uma abordagem multidisciplinar do fenómeno.

O Ministério Público, numa iniciativa de auto-organização, tem a funcionar, em seções do DIAP vocacionadas para lidar com a violência doméstica, magistrados especializados na área criminal e magistrados da área de família e menores.

Mas é preciso ir mais longe. E ir mais longe significa assegurar que o primeiro tribunal que toma conhecimento do facto – normalmente o tribunal de instrução criminal identifica soluções, ainda que provisórias, para todos os aspetos relevantes do conflito, aqui se incluindo a regulação das responsabilidades parentais e as medidas de tutela da personalidade.

Deve ser uma decisão provisória, por natureza. A caducar se, num prazo razoável, não for proposta a ação no tribunal competente: família e menores ou cível. O juiz criminal fica obrigado a comunicar as medidas provisórias que tomou ao juízo de família e menores competente. Aqueles tribunais terão a última palavra sobre a tutela cautelar da situação jurídica das vítimas, uma vez que têm o dever de proceder, independentemente de pedido, à revisão da medida provisória decretada pelo tribunal criminal.

O juiz criminal vai decidir, ainda que provisoriamente, medidas cautelares que existem hoje, no ordenamento jurídico nacional, e fá-lo-á respeitando os critérios e regras a que a sua aplicação já obedece. Não se regista, neste segmento, nenhuma novidade.

Os magistrados têm formação obrigatória (no ingresso na magistratura e ao longo da carreira) em matéria de direitos humanos e de violência doméstica.

O juiz criminal terá, pois, a formação mínima necessária à prolação das medidas de proteção provisórias.

Existem, ainda hoje, juízes que julgam todo o tipo de causas, nos designados juízos de competência genérica.

A especialização foi concebida em benefício de uma melhor realização de justiça. Em benefício das partes, das vítimas, dos justiçáveis.

Não constitui uma prerrogativa de quem decide. Nem resulta de imposição constitucional.

É ao Parlamento que compete, a cada momento, definir a organização, o modo de funcionamento e a competência dos tribunais, conformando-a às exigências de resposta e à natureza da litigiosidade que se vai gerando na sociedade.

A proposta que o Governo apresentou ao Parlamento partiu da análise cuidada das diferentes soluções identificadas no direito comparado e traduz um esforço de adequação ao quadro constitucional nacional de uma resposta judiciária que se quer efetivamente articulada.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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