Mesmo depois de uma pandemia

Testemunho de Ana da Cunha, estudante. “Anteontem, pela primeira vez em quase dois meses, saí para ver a Baixa do Porto. Com a máscara posta, claro, a respirar o ar filtrado pela camada azul. De repente, tudo me pareceu tão tranquilo, e tão bonito.”

Pareceu-me alarmista ao início. Lembro-me de estar no Mercado do Rato, a fazer uma reportagem com um colega, e de comentar: “Não, eles não vão fechar a faculdade.” Em algumas horas, os professores passaram de “Vamos manter as aulas” para “A faculdade vai encerrar”. Eu, que planeava apanhar o comboio de sexta-feira às 22h de Santa Apolónia para Campanhã, vi-me obrigada a regressar com um dia de antecedência. Lembro-me bem do último jantar entre colegas, das pizas congeladas e dos medos que ainda nos pareciam impossíveis. Ao chegar ao Porto, à 1h16, apercebi-me de que era real: tão cedo não regressaria a Lisboa. Despedia-me indefinidamente das viagens infinitas do Alfa Pendular.

Naquela sexta-feira 13 em que pus os pés em território nortenho, senti toda a angústia acumulada do ano de 2020 a cair sobre mim como um milhão de tijolos. Desde setembro que já não vivia com a minha família. Jantava sozinha num apartamento em Lisboa, enquanto via séries da Netflix e me deprimia no silêncio de quatro paredes. Lisboa era linda, sim, e havia muito a que me agarrar, mas, ao voltar ao Porto, em circunstâncias bizarras, encontrei uma oportunidade para me reencontrar. Com a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos. Com a infância esquecida, com os livros que tinha deixado nas prateleiras a ganhar pó.

Sempre tive medo de ser deixada sozinha. A quarentena ensinou-me a estar. Dantes, estava sempre ligada a horários, calendários, com medo de desperdiçar o meu tempo. Eis a minha chance para finalmente gastar o meu tempo bem gasto. Pela primeira vez em muitos anos, redescobri a minha paixão por madrugadas a escrever. Deixei de me preocupar tanto com regras. Houve dias em que só li ou vi televisão, houve dias em que só trabalhei, mergulhada em telefonemas para contar as histórias dos outros. Não eram histórias fáceis, claro — havia muito sofrimento nas ruas, nas vozes embargadas de pessoas que perdiam as suas famílias. Mas, apesar da catástrofe mundial, todos nós assistimos ao movimento da arte, da solidariedade e da esperança para nos salvar.

Anteontem, pela primeira vez em quase dois meses, saí para ver a Baixa do Porto. Com a máscara posta, claro, a respirar o ar filtrado pela camada azul. De repente, tudo me pareceu tão tranquilo, e tão bonito. Como se as árvores do jardim da Cordoaria tivessem ganho uma outra cor, como se o rio Douro fluísse com mais leveza. Caminhei pelas ruas ainda desertas, um fantasma a levantar-se do seu túmulo, e presenteei-me com uma ida a livrarias e alfarrabistas. Um velho senhor, dantes confinado ao seu lar, comentava com um funcionário: “Amanhã volto para me entreter.” E o mundo, que durante dois meses estivera em suspenso, acordava devagarinho... 

Durante a quarentena, fiz uma lista de coisas que tinha obrigatoriamente de fazer quando o estado de emergência fosse levantado. Ainda vai faltar algum tempo até poder cumprir todas, mas algumas já pude concretizar — um passeio com um amigo, uma ida à beira-mar. Para mim, como para muitos outros, a quarentena uniu-me àqueles que estavam longe. No meio de chats e videochamadas, reencontrei velhas caras e histórias — tudo isto com meros cliques. Hoje, o meu mundo é maior, talvez até mesmo melhor... e tudo isso, mesmo depois de uma pandemia.          

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