Anticiganismo em contexto de pandemia

Na atualidade, os ciganos portugueses sentem que a sua dignidade foi mais uma vez violentada, perante a defesa de um confinamento especial para a população cigana neste contexto de pandemia.

A Covid-19 veio exacerbar as desigualdades já preexistentes, afetando todos, mas principalmente os mais excluídos e vulneráveis. De facto, o universalismo das políticas sociais (dignidade igual de todos os cidadãos) não tem surtido os efeitos desejados na redução dos níveis de pobreza e exclusão (nomeadamente face à habitação e face ao “direito à cidade”), bem como da discriminação e racismo face aos ciganos quer em contexto nacional, quer internacional. Na atual situação de pandemia as desigualdades sociais parecem estar ainda mais acicatadas, mormente, a situação dos ciganos que vivem em bairros autoproduzidos (e.g. no bairro da Torre em Camarate), em tendas e em rulotes (e.g. em Évora) ou na rua (os despejos forçados no bairro Bensaúde, Lisboa) é precária, não humana, encontrando-se numa situação de elevado risco em termos sanitários.

Tal situação não se coaduna com as medidas de distanciamento social, de confinamento e com as práticas de higiene exigidas, para além de haver muitas crianças que não podem acompanhar o ensino por meios digitais, havendo muitos casos de adultos e crianças com várias comorbilidades, etc. O grau de exposição a esta pandemia é enorme. Acresce que as feiras e mercados foram suspensos antes de se decretar o estado de emergência e muitas famílias ciganas viram os seus rendimentos e nível de vida diminuírem drasticamente.

Acresce a tudo isto que, na atualidade, a maior minoria étnica na Europa enfrenta desafios acrescidos neste contexto de pandemia e de crescente avanço dos populismos e dos partidos e movimentos radicais e nacionalistas. É clara a compressão dos direitos humanos em muitos países europeus, os tiques de autoritarismo que muitos Estados revelam é preocupante, sendo algo ainda mais grave, até porque grande parte destes países fazem parte do espaço da UE. Em muitos deste Estados os ciganos estão a ser alvo de medidas especiais e discriminatórias, já o eram em tempos de não pandemia, mas agora essa situação reforça-se e assume contornos que ferem a dignidade humana e violam os direitos humanos.

As medidas de confinamento e quarentena forçada, frequentemente vigiada por militares e paramilitares, a construção de muros a separar bairros e territórios, a existência de checkpoints policiais junto a estes bairros e acampamentos, o banimento coercivo, são algumas das medidas que têm sido adotadas e que têm por base critérios étnico-raciais, não sendo, obviamente, admissíveis em países que fazem parte do projeto europeu. A demonização do imigrante, do refugiado e principalmente dos ciganos está a assumir uma dimensão incontornável e incontrolável na Hungria, na Bulgária, na Macedónia do Norte, na Ucrânia, na Eslováquia, na Roménia, em França (European Roma Center Rights, 2020), em Espanha (European Network Against Racism, 2020) e mais recentemente em Portugal. A culpabilização dos ciganos neste contexto epidémico não é um fenómeno recente, assim como o anticiganismo fomentado pelos intervenientes da arena política, tornando-se num fenómeno recorrente e transversal em várias partes do mundo (e.g. também no Brasil).

O papel dos media e das redes sociais tem sido crucial neste contexto, uma vez que, enquanto meios socializadores, dão voz apenas a alguns e não aos vitimizados, constituindo púlpito para representantes políticos com residência na casa da democracia, mas que infelizmente não representam de forma decente todos os cidadãos. O ressurgir destas narrativas racistas, que incitam ao ódio face às pessoas ciganas, que são ofensivas e humilhantes, que legitimam as desigualdades estruturais e institucionais, deixa transparecer que ao longo da história os ciganos têm sido um dos primeiros alvos.

Os ataques às populações ciganas inscrevem-se num contexto mais alargado e marcado por uma discriminação historicamente sistemática e estrutural enraizada na sociedade e nas suas instituições. Mas também o racismo quotidiano está bem sedimentado na sociedade portuguesa, configurando-se como um complexo de práticas acumuladas, manifestando-se como banais, “normais” e legítimas. A generalização e a estigmatização estão implícitas, como refere Memmi (1993), na medida em que o indivíduo deixa de ser pessoa com a sua individualidade para passar a ser apenas rotulado como membro de um grupo social, que possui características negativas e uma identidade negativa. A acusação é assim ilimitada no tempo e abrange a totalidade dos membros do grupo. Na atualidade, os ciganos portugueses sentem que a sua dignidade foi mais uma vez violentada, perante a defesa de um confinamento especial para a população cigana neste contexto de pandemia. Contudo, e felizmente, estas afirmações não passaram impunes e uma mobilização inédita entre cidadãos, independentemente das suas pertenças, expressou na esfera pública uma consensual indignação.

A Europa e Estados nacionais que adotaram a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas deveriam repensar a sua real eficácia, pois neste momento parece ser mais urgente a implementação de uma estratégia de proteção dos direitos humanos e de uma política de resposta ao racismo, que consagre, de forma efetiva, o pluralismo cultural, social, étnico, religioso, etc. tão marcante e singular nas sociedades europeias.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Texto escrito no âmbito de parceria com a Associação Portuguesa de Sociologia

Sugerir correcção