Novas Guerras do Alecrim e da Manjerona e o ensino da História

Apenas podemos acrescentar, como lado positivo desta querela bizarra, que “guerras” assim, por mais triviais que sejam, só podem existir num Estado democrático. A Liberdade também existe para se dizerem disparates, por mais que nos custe vê-los, ouvi-los ou lê-los.

Quem disse que as “guerras do alecrim e da manjerona” existiam apenas nas futilidades do século XVIII para serem satirizadas pela pena do teatro de comédia de António José da Silva, que foi morto pela Inquisição, acusado de judaísmo? Elas existem nos dias de hoje e as redes sociais, os jornais, a rádio e as televisões são os seus palcos favoritos.

Vem isto a propósito da tão falada e incrível crítica que Nuno Melo fez ao facto de ter passado numa aula da tele-escola um pequeno filme de Rui Tavares a propósito da Exposição do Mundo Português de 1940, que, como se disse por aqui (refiro-me à informação que li no artigo de João Miguel Tavares e em outros textos do PÚBLICO, porque não frequento o Twitter ou o Facebook), considerou “uma aviltante e ignóbil revolução cultural em marcha” com o objectivo de transformar “alunos em cobaias do socialismo”. Ridículo, neste século que deveria ser de cultura, de ciência e de cidadania, tão ridículo, noutras condições, como aquilo que “O Judeu” quis simbolicamente parodiar na sua peça tão apreciada, apresentada no Teatro do Bairro Alto em 1737 e que foi estudada, por exemplo, pelo teatrólogo José de Oliveira Barata.

Todavia, poderia encontrar-se uma ponta — uma pontinha — de oportunidade numa reflexão sobre essa aula se Nuno Melo soubesse algo de História e do seu ensino e não estivesse mergulhado até ao pescoço em oportunismo político. Não têm o mínimo de lógica essas suas deduções, mas poderia sim ter reflectido sobre o ensino que se faz, o qual raramente espelha a investigação que com tanto esforço se praticou e se vai praticando, privilegiando exageradamente, por outro lado, as técnicas de comunicação e esquecendo muitas vezes que a História não é uma narrativa “à la carte”.

Que eu saiba, Rui Tavares — mais conhecido como inteligente jornalista e político do que como historiador, como se intitula e que também é — não tem nenhum estudo importante sobre o Estado Novo e, concretamente, sobre a Exposição do Mundo Português ou sobre a propaganda salazarista. Dir-se-á que também essa especialização não seria precisa para uma aula de História de uma fase elementar de ensino. Seja como for, seria fácil encontrar no YouTube um outro filme mais interessante sobre o tema, por exemplo um em que participam Fernando Rosas, esse sim um historiador do Estado Novo, bem como o professor da Universidade do Porto Luís Alves (que, não sendo propriamente especialista na história do Salazarismo, é um historiador credenciado na área de História da Educação e do Ensino).

Haverá, todavia, um argumento: o documentário em que participou Rui Tavares durava apenas 6 minutos e 4 segundos e o documentário em que colaborou Fernando Rosas demora 23 minutos e 42 segundos, o que é importante em termos de transmissão por televisão, numa altura em que as aulas presenciais, as que afinal devem ser dadas (estimulando as reflexões sobre os conteúdos), não são permitidas devido à covid-19. E, em qualquer circunstância, se também fosse apresentado o documentário em que participou Fernando Rosas, seria previsível que Nuno Melo dissesse que se tratava igualmente de “um discurso pedagógico ou meramente ideológico de um perigoso esquerdista”…

Sobre a Exposição do Mundo Português e sobre a Propaganda no Estado Novo, na verdade não faltam fontes e estudos que os professores devem conhecer e citar. Recordo o livro de Margarida Aciaiuoli, Exposições do Estado Novo 1934/1940 (Lisboa, Livros Horizonte, 1998) e, se se quiser um texto de divulgação, lembro que a revista Visão História lhe dedicou um número (n.º 41, Maio 2017).

Mas para quê criar dificuldades, e muito menos lançar insultos, sobre um ensino para que os professores não estavam preparados? São simples “guerras do alecrim e da manjerona”, meros debates ideológicos sobre o ensino da História, de onde efectivamente a ideologia deve estar afastada o mais possível, ainda que nunca possa estar ausente por fazer parte da cultura de cada um de nós. A História é uma ciência complexa e objectiva que, necessariamente, tem de se basear em fontes de todo o tipo, assim como os seus pedagogos têm, ao menos, de conhecer os temas e quem trabalhou cientificamente sobre eles. História ideológica, ou ideologia historiográfica, é algo que surge em Estados totalitários e autoritários e não em Democracia.

Apenas podemos acrescentar, como lado positivo desta querela bizarra, que “guerras” assim, por mais triviais que sejam, só podem existir num Estado democrático. Não podiam acontecer em tempos da Inquisição, nem na época do Estado Novo, onde outra “inquisição” exercia o seu papel. Já não é mau por isso que essas “guerras” surjam. A Liberdade também existe para se dizerem disparates, por mais que nos custe vê-los, ouvi-los ou lê-los.

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