Um novo pico na “guerra dos tribunais”

A aceitação de que um tribunal nacional pode por si só, delimitar as competências da União, em assumida violação de uma sentença do Tribunal de Justiça, é a negação dos fundamentos rudimentares da comunidade europeia de direito.

1. As grandes tensões e mudanças políticas do Ocidente passaram sempre pelos tribunais. Não só por eles e não talvez a título principal. Mas ignorar o papel das instâncias judiciais nas epopeias políticas do Ocidente constitui um grave sintoma de miopia política e constitucional. Se olharmos para as raízes do parlamentarismo em Inglaterra, será fácil perceber a importância que os tribunais tiveram na travagem da introdução do absolutismo pela dinastia Stuart. São lendárias as sentenças do Chief Justice Edward Coke contra as pretensões absolutistas de Tiago I. Se nos focarmos no despotismo francês, há que lembrar a forte resistência ao poder absoluto dos Parlements – os “parlamentos judiciais”, verdadeiros tribunais a quem cabia registar as ordenanças do Rei (averiguando a compatibilidade com as velhas “leis fundamentais do Reino”). Ficou célebre a “guerra dos Parlamentos” com o soberano gaulês – que o título deste artigo abusivamente toma de empréstimo –, guerra que havia de moldar a compreensão futura do princípio da separação dos poderes. Se mirarmos a experiência americana, não há como negar a centralidade do Supremo Tribunal Federal, bem documentada na comoção que gera o processo de designação de cada novo juiz. Que seria da federação americana, se logo no início da sua vida, o Supremo Tribunal não houvesse estabelecido, por via da “teoria das competências implícitas”, que quem tem uma moeda única pode ter um banco central (apesar de o banco central não estar previsto na constituição)? E que seria do próprio Tribunal, se não tivesse “inventado” para si a judicial review of legislation, a competência de controlar a constitucionalidade das leis?

2. O desconcerto e até o escândalo com que foi recebida a sentença do Tribunal Constitucional alemão, que põe em causa a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o programa de compra de dívida pública promovida pelo Banco Central Europeu, é deveras surpreendente. Na verdade, o Tribunal de Karlsruhe mostra consistentemente há décadas uma enorme relutância em reconhecer ao Tribunal do Luxemburgo a competência da “última palavra”. E, muito menos, em reconhecer-lhe a “competência das competências” – ou seja, a competência para definir o seu próprio leque de competências. Nos anos 70, a respeito da jurisprudência Solange, era porque ao direito comunitário minguava a protecção dos direitos fundamentais, que só pela Lei Fundamental de Bona estaria protegida. Em 1993, na sentença sobre Maastricht, era pela necessidade de garantir que o direito europeu assegurava uma “protecção equivalente”. E em 2009, no acórdão sobre o Tratado de Lisboa, tal como em Maastricht, nega-se taxativamente a “competência das competências” às instituições europeias e admite-se poder decidir sobre todos os seus actos, incluindo os do Tribunal do Luxemburgo. Isto, se eles forem praticados “ultra vires”, ou seja, excedendo os poderes dados pelos Tratados. Mas – surpresa das surpresas – o juízo sobre o carácter “ultra vires” das decisões cabe afinal ao Tribunal alemão, que fica assim, com exclusão da União e dos restantes Estados-membros, dono e senhor da dita “competência das competências”.

 3. Tanto no acórdão de Maastricht como no de Lisboa, o Tribunal de Karlsruhe centra-se na identidade constitucional alemã e na violação do princípio democrático. Alude, também em sentenças posteriores, a um incorrigível défice democrático da União, que reclama a necessidade de assegurar uma ampla intervenção do parlamento alemão. O Parlamento Europeu – discorre-se – não seria democrático por não cumprir a regra one man, one vote (são precisas onze vezes mais votos para eleger um deputado alemão do que um maltês), esquecendo-se de ligar a representação no PE à ponderação de votos no Conselho. Em 2014, ao invalidar a cláusula-barreira para as eleições europeias, ajuíza que, nas relações entre o PE e a Comissão, não subsiste a dialéctica democrática maioria-oposição e intercede uma grande fragmentação partidária, pelo que a estabilidade governativa não é um valor. Tudo o que constitui um obstáculo a um controlo democrático, que só existe na arena nacional. No juízo sobre o Tratado de Lisboa, é mesmo usada, pela primeira vez na história da República Federal, a palavra “soberania” – palavra que não aparece no texto da constituição e que é benignamente identificada com “patriotismo constitucional”.

4. Por mais que estivesse anunciada nos astros ou nas cartas, a chegada desta sentença é grave, muito grave. Desde logo, pelos seus efeitos práticos. Se, na sequência do prazo de três meses, ela levar a uma exclusão do Banco Central alemão do programa em causa, a repercussão sobre o euro e a zona euro será devastadora. Mas ainda que nada suceda, ela cria uma enorme incerteza nos mercados e limita imenso a margem das autoridades alemãs para anuírem a uma solução solidária na crise da covid-19, tanto mais que o prestígio do Tribunal de Karlsruhe na sociedade alemã é da ordem do sagrado. Eis, no plano prático, um exemplo perfeito da máxima jurídica: fiat iustitia et pereat mundus! No plano jurídico, político e constitucional, as consequências são ainda mais preocupantes. A aceitação de que um tribunal nacional, por mais alto que se alcandore, pode por si só, delimitar as competências da União, em assumida violação de uma sentença do Tribunal de Justiça, é a negação dos fundamentos rudimentares da comunidade europeia de direito. Tolerar este precedente é demolir, país a país, essa comunidade e a ordem que a sustenta.

5. A história da primazia do direito e da democracia no Ocidente nunca dispensa uma guerra judicial. Os tribunais tanto aparecem do lado dos que querem preservar o status quo ou até regredir como do lado dos que querem avançar e progredir. De uma longa guerra surda, e em surdina, passamos à guerra aberta. Sarcasmo dos deuses ou pico epidemiológico: tal como a covid-19, também esta decisão lança um desafio existencial à União.

Não e Não

NÃO António Costa. Não há razão para o desconhecimento do apoio ao Novo Banco. Mas ainda há menos razão para que a sociedade e as instituições se bastem com um pueril pedido de desculpas.

NÃO Mário Centeno. Se o Ministro das Finanças sonega informações essenciais ao PM deve demitir-se ou ser demitido. E mostra não ter perfil para outro cargo público (Governador do Banco de Portugal).

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