Será eticamente aceitável retomar aulas como parece estar previsto? – Uma alternativa

Este regresso às aulas presenciais, nestas circunstâncias, parece ser de enorme leviandade e, consequentemente, um erro ético que não deve passar em claro

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Nuno Ferreira Santos

A pergunta ética crucial é: o que devemos fazer? Neste caso, o que devemos fazer quanto ao retomar ou não de aulas no ensino secundário, tal como parece estar previsto para breve, a 18 de Maio? 

Manifesto a minha perplexidade e preocupação pela decisão desta retoma nas condições que são do conhecimento público, tanto quanto se pode ajuizar pela informação disponível, até à data, dado o risco para a saúde pública que é expectável esta decisão implicar, sem que nada de substantivamente equivalente ou mesmo superior se lhe possa contrapor.

Isto para já não referir os inúmeros obstáculos “técnicos” que esta decisão levanta. Comece-se por estes últimos. O que diz a resolução aprovada em Conselho de Ministros? Artigo 10.º – Regras de ocupação, permanência e distanciamento físico:

  1. Em todos os locais onde são exercidas atividades de comércio e de serviços nos termos do presente regime, sejam estabelecimentos de comércio, por grosso ou a retalho, ou grandes superfícies comerciais, conjuntos comerciais, mercados, lotas ou estabelecimentos de prestação de serviços, devem ser observadas as seguintes regras de ocupação, permanência e distanciamento social: a) A afetação dos espaços acessíveis ao público deve observar regra de ocupação máxima indicativa de 0,05 pessoas por metro quadrado de área; (...)”.
  2. Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior: a) Entende -se por “área”, a área destinada ao público, incluindo as áreas de uso coletivo ou de circulação, à exceção das zonas reservadas a parqueamento de veículos; b) Os limites previstos de ocupação máxima por pessoa não incluem os funcionários e prestadores de serviços que se encontrem a exercer funções nos espaços em causa”, o que parece incluir, se se for consistente, professores. 

1. Se (i) as orientações emanadas do Ministério da Educação (via Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares) para o recomeço das aulas presenciais não determinam um número específico de alunos por sala, já (ii) a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, no seu artº 10º, alínea a), especifica uma ocupação máxima por m2 , a saber, 0,05 , o que implica a ocupação, num espaço fechado, de uma pessoa por cada 20 m2. Se assim for, uma sala com 100 m2 só poderia ser ocupada por seis pessoas (supostamente cinco alunos e um professor, visto a Resolução referir que prestadores de serviços não contam; mas assuma-se que professores e alunos contam como pessoas...).

2. Porém, este estado de coisas naturalmente levanta sérios problemas quanto à operacionalização de aulas presenciais. A Resolução em causa também determina a distância mínima a observar entre pessoas: no referido art.º 10º, b), lê-se: “A adoção de medidas que assegurem uma distância mínima de dois metros entre as pessoas, incluindo aquelas que estão efetivamente a adquirir o produto ou a receber o serviço, podendo, se necessário, determinar-se a não utilização de todos os postos de atendimento ou de prestação do serviço”. Ora, este último tópico parece enquadrar o caso de actividades lectivas presenciais, pois os docentes são prestadores de serviços.

Porém, nas Orientações do Ministério da Educação apenas se refere a distribuição de um aluno por secretária ou mesa. Se isto assim for, teremos de afastar secretárias ou mesas para que essa distância seja respeitada entre alunos e entre estes e o professor, o que coloca novamente em jogo os problemas de operacionalização supracitados (a “extensibilidade das salas de aulas” assume limites arquitectónicos bem objectivos).

3. Além destas anomalias difíceis de ultrapassar, o que se obteria no plano ético? Fazer regressar agora à escola alunos que tipicamente mantêm um número considerável de interacções sociais, incluindo não apenas alunos das disciplinas dos anos sujeitos a exame nacional (mesmo aqueles que os não irão realizar), mas também ao que parece alguns alunos dos cursos profissionais (e aqui a incerteza prevalece), parece ser uma decisão irresponsável porque todos estes alunos iriam estar em contacto com uma faixa etária de professores e funcionários, muitos dos quais acima dos 50 anos, alguns com 60 ou mais anos, e alguns com comorbilidades. Além de os alunos contactarem com pais, encarregados de educação e alguns parentes da faixa etária acima dos 70, havendo ainda comorbilidades que não devem ser, sem mais, lançadas para o conjunto vazio. 

Logo, se esta decisão parece irresponsável no plano da saúde pública, será também uma decisão que fere a ética, pois previsivelmente coloca em risco a vida de pessoas inocentes. E aqui de pouco serve argumentar a favor da ideia de que esse poderá ser um efeito meramente colateral, mas não pretendido, apesar de expectável.

4. Um recente estudo da Fundação Champalimaud, envolvendo testes serológicos  reforça a ideia de que o número de infectados activos, logo, potencialmente contagiosos, e muitos deles assintomáticos, pode ser muito elevado. Dada a amostra – 1235 pessoas –, e mesmo tendo em conta o universo em causa, o resultado obtido foi 14 vezes superior ao que teria sido detectado em testes PCR, para a população testada do mesmo concelho de Loulé. Ora, isto é um forte indício que apoia a ideia de que este regresso às aulas presenciais, nestas circunstâncias, parece ser de enorme leviandade e, consequentemente, um erro ético que não deve passar em claro.

5. E a evidência científica pode, para já, ser reforçada. Na verdade, um outro estudo publicado no jornal da Canadian Medical Association, aponta, nomeadamente, três factores que contribuem claramente para reduzir esta progressão pandémica: 1) medidas de distanciamento social, 2) restrições de ajuntamentos de pessoas e, o que importa aqui sublinhar, 3) fecho de escolas.

6. Como professor do ensino secundário público, estou pronto para assumir as minhas responsabilidades e, creio, muitos professores, dentro e fora de Conselhos Pedagógicos e de Conselhos Gerais, dentro e fora de sindicatos, estarão também prontos para assumir as suas, tal como muitos pais e encarregados de educação — parece tratar-se da observação de princípios éticos inescapáveis, na defesa do interesse comum: minimizando estragos que esta pandemia tem provocado e tentado optimizar o ensino e as aprendizagens com os recursos que estão ao nosso alcance.

7. Mas haverá alguma alternativa credível ao que nos é ministerialmente “proposto”? É que a ética não deve ser advogada tendo por suposto a inexistência de algo fisicamente acessível em termos de melhores alternativas, ou no mínimo menos más, para os agentes implicados nestas tomadas de decisão. Ora, parece-me que a resposta para aquela pergunta é afirmativa, por exemplo, defendendo globalmente as soluções expressas publicamente pelos subscritores de Por que não devem reabrir as escolas para o ensino secundário que, neste momento, se constitui como petição que pode ser assinada no site do Parlamento nacional.

8. Ora, se há melhores alternativas — pelo menos uma! —, e que em nada hipotecam a equidade que deve prevalecer, nomeadamente no acesso de alunos ao ensino superior, por que razão persistir num erro que pode custar o sofrimento de vidas inocentes que poderiam não ser sacrificadas, caso se mantivesse o actual regime de Ensino Remoto de Emergência que, não negligenciando óbvias dificuldades, até se tem comportado com razoabilidade? Só porque tecnicamente já não estamos em estado de emergência? Isso é, para já, seguro. Mas também será muito provável que decisões irresponsáveis possam vir a assumir-se como calamitosas, esteja ou não legalmente decretado o estado que esteja.

Texto actualizado às 16h39: acrescentado o 5.º ponto.

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