Professora mal conhecia os pais de um aluno, mas acolheu o recém-nascido do casal doente com covid-19

Docente norte-americana conseguiu, através de uma campanha de angariação de fundos, dinheiro para que o casal lide com a perda dos seus empregos.

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“Neysel é um prematuro, por isso precisa de ser alimentado de duas em duas horas” DR/The Washington Post

Luciana Lira, professora do ensino básico, recebia frequentemente telefonemas dos seus alunos e dos pais destes quando existiam dúvidas sobre as tarefas escolares da disciplina de Inglês língua não materna, sobretudo desde que a escola onde lecciona, em Stamford, Connecticut, encerrou e passou para um sistema de ensino à distância.

Até que, a 31 de Março, recebeu uma chamada diferente: era a mãe de um aluno que não tinha dúvidas sobre as tarefas escolares — antes, um pedido inusitado vindo de alguém que tinha visto apenas um par de vezes, durante as reuniões de pais.

“Menina Lira, chamo-me Zully — sou a mãe do Júnior”, disse-lhe a mulher em espanhol, ofegante, recordou a professora. “Preciso da sua ajuda. Por favor, ligue ao meu marido e ajude-o e ao meu filho. Estou no hospital e vou fazer uma cesariana de urgência.”

Zully, que se tinha mudado recentemente da Guatemala para os Estados Unidos com a família, contou que estava prestes a dar à luz ao seu segundo filho, mas que tinha sido diagnosticada com covid-19 e que estava com dificuldades respiratórias.

Luciana telefonou ao marido de Zully, Marvin, e este autorizou-a a comunicar com o pessoal médico e a agir como intermediária.

Os médicos monitorizaram Zully durante dois dias e depois fizeram o parto do seu bebé, Neysel, cinco semanas antes da data prevista. A criança, que pesava 2600 gramas, foi enviada para a neonatologia, enquanto Zully foi ligada a um ventilador, tendo permanecido em coma durante mais de três semanas. “Eles não pensavam que ela conseguisse sobreviver”, disse Luciana Lira.

E as notícias pioraram a partir daí.

Tanto Júnior, de sete anos, como o seu padrasto Marvin fizeram o teste ao novo coronavírus. E, caso o resultado fosse positivo, ambos teriam de cumprir quarentena e não poderiam levar o bebé para casa. Problema: não havia ninguém que pudesse ficar com Neysel.

Foi por essa altura que Luciana, de 42 anos, que tinha estado em contacto com o hospital, decidiu que só havia uma atitude a tomar. Agarrou no telefone e ligou a Marvin. “Sei que não me conhece, como eu não o conheço”, lembra-se de lhe ter dito. “Mas, se quiser, posso trazer o bebé comigo até depois de saber do resultado do teste. Depois pode vir buscar o seu filho a minha casa.”

A resposta de Marvin, entrecortada por um soluçar, foi imediata: “Vou confiar em si.”

Assim, no dia 7 de Abril, com Zully ligada a um ventilador nos cuidados intensivos e Marvin e Júnior em isolamento, Luciana Lira comprou uma cadeirinha de automóvel, um berço, fraldas e leite de fórmula, conduziu até ao Hospital Stamford e levou para casa um recém-nascido, 11 anos depois de o ter feito com o seu filho, Christopher.

De volta às fraldas

Quando chegou a notícia, dois dias depois, de que Júnior e o seu padrasto estavam infectados com SARS-CoV-2, a família de Lira rapidamente se preparou para uma nova rotina, entre biberões e fraldas.

Agora, Luciana Lira, de nacionalidade brasileira, concilia os cuidados a um bebé pequeno com as aulas em formato digital que organiza para os seus alunos da Escola Primária Hart Magnet de Stamford. E com noites mal dormidas…

“Estou exausta, sim”, desabafou a professora, ao mesmo tempo que confessou ser “muito gratificante”. “Neysel é um prematuro, por isso precisa de ser alimentado de duas em duas horas”, explicou. Além disso, o pequeno “adora ficar acordado a maior parte da noite”, relata. Porém, não se arrepende da sua decisão: “Sinto-me honrada por a família querer a minha ajuda.”

Entretanto, já se passou mais de um mês desde o primeiro telefonema da mãe do seu aluno e as notícias são animadoras: Zully ainda está fraca, mas já teve alta do hospital e está em casa com Marvin e Júnior. No entanto, para já, o bebé mantém-se com a professora.

“Mais do que tudo, adoraria que Zully o tivesse de volta e o segurasse nos braços no Dia da Mãe”, que se assinalou nos EUA no último domingo. “Mas isso pode não ser possível, por isso estou feliz por fazer o que posso.”

A bondade de Lira espalhou-se rapidamente pela comunidade quando outra professora da sua escola, Joy Colon, partilhou a história no Facebook. E, além do interesse dos repórteres, a sua generosidade acabou por contagiar outros, amigos e também estranhos, que lhe ligaram disponíveis para a ajudar.

“A Lu sempre foi incrível, mas agora o mundo inteiro sabe disso”, disse Colon, que conhece Lira há 17 anos.

Vários dias depois de ter levado Neysel para casa, a professora percebeu que provavelmente havia outra razão para se ter oferecido para tomar conta do bebé. Em 2009, a gravidez da qual nasceria Christopher era gemelar. Porém, um dos fetos perdeu o batimento cardíaco. E, tal como Zully, Lira passou várias semanas nos cuidados intensivos, enquanto o seu filho foi levado para longe. “Tal como a Zully e o Neysel, [eu e o Christopher] fomos milagres”, concluiu.

Além do apoio a esta família, Lira tem vindo a ajudar financeiramente outras oito famílias de alunos, que ficaram sem rendimentos como consequência da pandemia. Entretanto, criou uma página para recolher fundos para os pais de Neysel, que perderam os seus empregos, tendo recolhido já mais de 47.600 dólares (cerca de 44 mil euros, estando a dois mil euros do objectivo).

“A minha esperança para esta família é que, em breve, tenham o bebé em casa e o possam segurar nos braços”, disse Luciana Lira, que sente que o seu acto também fez a diferença para os outros alunos. “Uma das minhas alunas disse-me: ‘menina Lira, se precisar de ajuda, a minha mãe sabe muito sobre bebés’”, concluindo que “tem sido bom ensinar estas crianças que podem ser compassivas e carinhosas com alguém que não conhecem”.

Já sobre o fim desta história, a professora está certa de que irá sentir saudades do pequeno Neysel, embora estime que irá voltar a encontrá-lo. “Quando se for embora, vou sentir muito a sua falta. Mas tenho a sensação de que, um dia, ele será um dos meus alunos.”

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