Confinamento: o peso da palavra

Chegadas aqui, a covid-19 remeteu-nos, de novo, ao confinamento. A todos, sim. Homens e mulheres. Mas sabe-se que, no mundo inteiro, são ainda as mulheres que realizam a grande maioria do trabalho informal e precário.

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Ava Sol/Unsplash

Desde que tudo isto começou que sinto um bloqueio mental. É como se o meu cérebro me tentasse ludibriar e quisesse, neste intervalo em que o mundo quase pára, deixar de trocar informações com o ambiente à sua volta e com o meu corpo e manter-se quietinho. A rede de neurónios que o habita não sabe ainda como reagir aos sinais sinápticos que recebe porque estes, de repente e sem aviso, deixaram de circular em auto-estradas com várias faixas para passarem a circular em carris, nas antigas e pesadas carruagens dos comboios a carvão. Os lobos frontais estão extenuados. Não é para menos. Os números que descrevem o coronavírus pesam: 3.784.085 infectados em todo o mundo, 264.679 mortos (enquanto escrevo este texto). Estes números pesam como chumbo. Entram-nos pela casa dentro todos os dias, alojam-se no cérebro e deixam-nos arrasadas, sem conseguir raciocinar.

E as palavras a ele associadas também pesam. A palavra “pandemia”, que vem do grego e cujo significado é “tudo/todo o povo”, é uma palavra pesada porque nos avisa, logo à partida, que ninguém se encontra a salvo. E tem valido o seu peso em vidas. Muitas, por dia. Sentimos esse peso todos os dias. Em Portugal já todos conhecemos alguém infectado, e muito facilmente imaginamos que, no país vizinho, todos já conhecem alguém que já morreu. Este facto pesa. E dói. E a dor instala-se no cérebro e mistura-se com o medo e ficamos sem conseguir pensar. 

A palavra “confinamento” — que, segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, significa “acto ou efeito de confinar ou de se confinar; limite, fronteira; isolamento” — já tem um peso relativo. Depende do significado que cada qual lhe atribui e temos todos lido inúmeros textos a romantizar a situação de isolamento que esta palavra descreve. A mim, admito, pesa-me imenso. Tanto que tenho sonhado várias vezes que me encontro fechada, entre quatro paredes que se movem e me esmagam, como se eu fosse um minúsculo e frágil insecto. Estes sonhos pesam. E asfixiam e a falta de ar chega ao cérebro e sinto-me a deixar de existir.

É o peso da história. “Confinamento” tem um significado diferente para homens e para mulheres. Durante séculos, as mulheres viveram confinadas ao espaço privado, nas “suas” casas, remetidas ao trabalho reprodutivo, sendo afastadas da vida pública e impedidas de circular livremente porque, “naturalmente”, tinham predisposição para esta divisão sexual do trabalho e considerava-se que não tinham força, nem inteligência, para aguentar as adversidades e os “perigos” das actividades públicas e produtivas. Com estratagemas mais ou menos claros, as mulheres, tratadas como mercadoria, foram, ao longo da história, marginalizadas e invisibilizadas, sendo confinadas a um universo privado. Por um lado, o controlo do mercado de trabalho e dos meios de produção, considerado pelas nossas sociedades sinónimo de poder e controlo, teria que estar nas mãos dos homens; e, por outro, porque era necessário conter a energia erótica das mulheres, como meio de garantir a construção da própria linhagem, em que o pai gerava o filho, o filho gerava o neto e a mulher era apenas útero.

Nem sequer é necessário estudar a história das mulheres e do feminismo para sabermos isto. Basta ouvir as várias histórias infantis que existem com princesas presas nas torres, guardadas pelos dragões, ou as lendas das mulheres prisioneiras nas masmorras dos castelos e das moiras cativas nas grutas. A história do feminismo só é importante para se entender como é que, desde o início do século XX, as mulheres lutaram contra estas injustiças e desigualdades, tendo ganho as batalhas necessárias para conquistar o espaço público — embora ainda de forma assimétrica.

Chegadas aqui, a covid-19 remeteu-nos, de novo, ao confinamento. A todos, sim. Homens e mulheres. Mas sabe-se que, no mundo inteiro, são ainda as mulheres que realizam a grande maioria do trabalho informal e precário. E são as mulheres que realizam a grande maioria do trabalho doméstico e de cuidados que, não sendo remunerado, é o tal trabalho reprodutivo, que já deveria constar no PIB, para começar a ser valorizado. E, sabemos, vão ser ainda as mulheres que vão assumir a assistência a doentes e o cuidado e apoio dos filhos, se as escolas permanecerem encerradas, e serão as primeiras a desistir do trabalho, caso venha a ser necessário, para realizar essas tarefas. E também sabemos que serão as primeiras a ser despedidas e a ter imensas dificuldades para conseguir um novo trabalho, após a crise.

Vários artigos já foram escritos sobre isto. Aliás, já quase tudo foi escrito sobre o coronavírus, basta pensar nas múltiplas opiniões (embora eurocentristas) que constituem o livro Sopa de Wuhan, que pode ser descarregado na internet. Cada uma de nós continua a escrever, talvez para fazer uma catarse pública e melhorar o próprio estado de ânimo. Este texto, para além disso, tem ainda o objectivo de pedir a todas que fiquem atentas, para que não haja retrocessos nas nossas conquistas, porque sabemos que pequenas distracções conduzem a recuos. O mundo, depois de tudo isto, não vai ser o mesmo. E talvez não deva ser porque as mudanças são necessárias. Mas não podemos permitir retrocessos nas lutas pela justiça e pela igualdade. Estar atentas implica, entre outras coisas, desconstruir as informações das forças de segurança pública que referem que as queixas por violência doméstica diminuíram, sem uma análise maior. Isto só acontece, como é óbvio, porque se torna difícil ou quase impossível para as vítimas apresentarem queixa, uma vez que são vigiadas constantemente. Implica denunciar estados de direito que, aproveitando o confinamento, tentam legislar contra os direitos das mulheres, como aconteceu há alguns dias na Polónia. Implica, ainda, acreditar que as celebrações do 25 de Abril na Assembleia da República e cantar a Grândola, Vila Morena à janela não poderiam fazer mais sentido nesta altura. “A madrugada que nós esperávamos” já chegou há muito tempo e atrás dessa seguiram-se outras e estão ainda muitas por vir.

Como referiu o primeiro-ministro no dia em que foi decretado o estado de emergência: “Somos e continuaremos a ser uma sociedade de pessoas livres”. E é por isso que estar atentas implica, também, celebrar sempre a democracia e a liberdade, aguardando novas madrugadas, para “livres habita(r)mos a substância do tempo”, como dizia Sophia de Mello Breyner Andresen.   

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