Uma vaga para mudar o mundo

O desafio sem precedentes do coronavírus fez-nos acordar para uma evidência implacável: o planeta em que vivemos tende a tornar-se cada vez mais inabitável, até do ponto de vista da sobrevivência das espécies e da natureza.

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REUTERS/Garry Lotulung

Agora que, um pouco por toda a parte, começou o desconfinamento, a sensação de alívio ameaça confundir-se, cada vez mais, com a insegurança e o medo. Não é possível continuar em casa por tempo indefinido enquanto se assiste ao colapso da economia, ao aumento das desigualdades, da pobreza e do desemprego (que afectam as populações e regiões mais atingidas pela pandemia, como era relatado no PÚBLICO de ontem). Mas sair à rua e voltar à “normalidade” pode ter também consequências desastrosas no plano sanitário, com um crescendo de contágios e de mortes.

É perante esta escolha trágica que estamos hoje confrontados, a não ser que aproveitemos também a oportunidade para dar a volta ao mundo em que vivemos. Ou submetemo-nos à maldição – e às próximas vagas do vírus que parecem inevitáveis – ou tentamos virar do avesso os constrangimentos que nos sufocam e arriscamos apostar finalmente em novos horizontes que fomos sucessivamente adiando (por conservadorismo, imobilismo, cinismo e até temor dos sacrifícios que nos serão exigidos).

Sim, a calamidade actual pode obrigar-nos a uma revolução das mentalidades – e esse encontro com o futuro não voltará a ocorrer no tempo das nossas vidas. O desafio sem precedentes do coronavírus fez-nos acordar para uma evidência implacável: o planeta em que vivemos tende a tornar-se cada vez mais inabitável, até do ponto de vista da sobrevivência das espécies e da natureza.

Não é decerto por acaso que se multiplicam hoje através do mundo as tomadas de posição, os alertas, os manifestos, mobilizando cidadãos das mais diversas áreas no sentido de não perdermos esta oportunidade histórica irrepetível para a nossa geração. Duas dessas iniciativas, infelizmente sem repercussões conhecidas em Portugal, vinham relatadas esta semana pelo Le Monde (um jornal que se tornou de leitura obrigatória nos dias que correm). A primeira, 100 princípios para um novo mundo, era encabeçada pelo ex-ministro da Ecologia francês, Nicholas Hulot. A segunda, “Não a um regresso ao normal”, juntava alguns prémios Nobel a múltiplas personalidades das artes e do espectáculo, como Juliette Binoche, Robert De Niro, Jane Fonda, Barbra Streisand, Madonna, Almodóvar, Sting, Joaquin Phoenix, Julianne Moore, Bob Wilson ou Wim Wenders, entre muitas outras.

Neste manifesto destaca-se que “a catástrofe ecológica em curso releva de uma ‘meta-crise’: a extinção massiva da vida sobre a Terra já não suscita dúvidas e todos os indicadores anunciam uma ameaça existencial directa (…) O consumismo conduziu-nos a negar a própria vida: a dos vegetais, a dos animais e a de um grande número de humanos. A poluição, o aquecimento e a destruição dos espaços naturais conduzem o mundo a um ponto de ruptura”.

Já nos 100 pontos enunciados por Hulot, refere-se que “é tempo de apreender o conjunto das crises ecológicas, climáticas, sociais, económicas e sanitárias como uma única e mesma crise: uma crise do excesso”, fazendo com que a vida esteja “suspensa por um fio”. Daí que também tenha chegado o “tempo da sobriedade”, “de aprender a viver mais simplesmente”, “de nos libertarmos das adições consumistas”, de “viajar perto de nós”, de “distinguir o essencial do supérfluo”, de “admitir a complexidade”, de “sincronizar ciência e consciência”. Tal como “chegou o tempo da humildade”, da “indulgência”, da “empatia”, da “modéstia e da audácia”.

Palavras vãs, comentarão os cínicos, os instalados no poder dos privilégios, os que vivem indiferentes ou acomodados perante as desigualdades, a pobreza, a exclusão – e as forças que vão tecendo a teia da destruição do planeta. Mas a vaga que começa a levantar-se nestes tempos de crise sem precedentes pode emprestar a essas palavras a inspiração necessária para mudar o mundo.

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