Filantropia e jornalismo: a conveniência de um casamento

A filantropia precisa do jornalismo. O jornalismo precisa de recuperar relevância e impacto social. Por isso, já valerá a pena tentar um casamento.

A pandemia da covid-19 veio tornar ainda mais aguda a crise da comunicação social. A filantropia, considerada no sentido de doações financeiras, tem sido referida como uma possível fonte de suporte a um jornalismo com problemas cada vez mais sérios de sustentabilidade. Mas será a filantropia a noiva ideal para o jornalismo – ou, perguntando de outra maneira, que filantropia, para que jornalismo?


De apoios a projetos de investigação à formação de jornalistas em áreas temáticas específicas ou mesmo a programas de apoio à reconversão das “velhas” empresas de comunicação social em formatos não lucrativos, são várias as possibilidades de apoio da filantropia ao jornalismo.


No entanto, é importante reconhecer que o setor filantrópico é ambivalente em relação ao risco, o que significa que a comunicação social não encontrará no mundo das fundações um parceiro disponível para todas as aventuras. Expor escândalos e enfrentar tabus não está no âmago do setor filantrópico. Além disso, as fundações têm um certo apetite por novidade que as faz investir em projetos por períodos geralmente curtos, de 1 a 3 anos. Ou seja, dificilmente será noiva para casamento muito longo (o que não significa que não seja bom enquanto dure).


Pode portanto a filantropia salvar o jornalismo? A resposta curta é não, sobretudo não a longo prazo. Mas pode ser muito útil a contribuir para que o jornalismo se salve a si mesmo. Como? Abordando um outro desafio no relacionamento entre a filantropia e o jornalismo que está intimamente ligado à essência do trabalho filantrópico e daqueles que o desenvolvem.


Albert Schweitzer, prémio Nobel da Paz em 1952, foi sublime no alerta. O filantropo considerava o jornalismo preocupante no sentido em que a ênfase nos eventos negativos era demasiado forte; por outro lado, as notícias sobre eventos que geravam progresso real eram desconsideradas ou trivializadas. Segundo ele, esta atmosfera negativa trazia uma consequência: fazer com que as pessoas perdessem a fé no progresso da sociedade.


Para Schweitzer, o progresso real está intrinsecamente ligado à fé que a sociedade tem de que esse progresso é possível. Ora, a filantropia é construída precisamente em cima desta esperança. Décadas passaram e o jornalismo continua preocupante no mesmo sentido. Se o apoio da filantropia ao jornalismo conseguir, pelo menos, equilibrar um pouco esta balança, já poderá ser dinheiro bem investido.


Para tal, a filantropia precisa de um jornalismo menos de agenda diária e mais prospetivo e construtivo. Não se trata de ignorar notícias negativas ou escolher histórias bem-dispostas. Pelo contrário, significa escolher as histórias mais importantes para a sociedade e explicar não só os problemas mas também as possíveis soluções. Será um jornalismo mais temático e orientado para resultados.


Precisa também de um jornalismo de advocacia que esteja alinhado com os objetivos de mudança social e política que a própria filantropia pretende exercer, de forma transparente e intencional. Num mundo cheio de desigualdades, não ter uma posição política é um privilégio de alguns. As fundações estão a assumir essa responsabilidade política, por exemplo quando adotam de forma generalizada a agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, uma agenda política na sua génese.


A filantropia não é neutra ao tomar posições relativamente à visão que quer da sociedade e ao fazer perguntas como: o que significa uma boa vida? Que paradigmas queremos seguir: China? Suécia? Deste modo, o apoio que faz ao jornalismo também não irá ser neutro. Claro que a
linha que separa um jornalista e um ativista poderá ficar ténue em alguns momentos. Ou seja, o apoio da filantropia não é para todo o tipo de jornalismo ou de jornalista. Irá condicionar o tipo de audiência e até o tipo de jornalistas que irão ter trabalho.


Uma coisa é certa: os jornalistas têm o potencial de moldar a maneira como vemos o planeta. E também de moldar as nossas crenças sobre a nossa capacidade de mudá-lo. Para o bem e para o mal. A filantropia precisa do jornalismo. O jornalismo precisa de recuperar relevância e impacto social. Por isso, já valerá a pena tentar um casamento.


As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas o autor
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