Alguma vez pensaram no mundo sem a humanidade?

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Estávamos na era da aceleração e da velocidade (…), com a saturação do tempo e a cultura de ocupá-lo. E agora damos por nós incapazes de viver o tempo de maneira diferente da sobreactividade e do trabalho.” Felwine Sarr, filósofo, economista e escritor senegalês

“Será o mesmo, um pouco pior”

Será que o vírus nos trouxe algo de ensinamento? Vamos ser melhores depois desta experiência? Ouvir os cientistas? Mudar as políticas? A julgar pela forma como muitos políticos têm lidado com esta emergência de saúde pública, não é de esperar grandes epifanias existenciais no pós-pandemia. Michel Houellebecq está seguro que “não nos despertaremos, depois do confinamento, num novo mundo; será o mesmo, um pouco pior”, como refere numa carta lida na France Inter. O escritor francês não prima pelo optimismo, nem tem em muito boa conta a humanidade para acreditar que se anunciem mudanças, mais ainda quando está convencido que “a epidemia de coronavírus oferece uma magnífica razão de ser a essa forte tendência: uma certa obsolescência que parece afectar as relações humanas”. A tragédia não nos trouxe a noção de que tudo é finito, garante Houellebecq, porque “as vítimas resumem-se a uma unidade na estatística das mortes quotidianas e a angústia que se generaliza entre a população à medida que o total aumenta tem qualquer coisa de estranhamente abstracto”. Aliás, se há coisa que nos ensinou esta pandemia, foi que nem todas as vidas humanas têm o mesmo valor e são mais dispensáveis quanto mais velhas forem e “nunca o exprimimos com tal impudor tranquilo”.

Um exemplo pouco exemplar

Louvada pela sua capacidade de controlar a pandemia, agindo de forma rápida com auxílio da tecnologia e da comunicação pública, Singapura escondia debaixo do verniz de cidade-Estado moderna um segredo que, de repente, emergiu à superfície e mostrou a pouca atenção concedida pelo Estado à sua comunidade imigrante de mais de um milhão de trabalhadores, num país com 5,7 milhões de pessoas. E, num ápice, dos 200 casos positivos de covid-19, o país saltou para os milhares (17.758 até 6 de Maio), quando a pandemia chegou aos dormitórios sobrepovoados dos estrangeiros que garantem o trabalho braçal da praça financeira e tecnológica. Nos quartos onde chineses, bangladeshianos, indianos dormem aos 15 e 20, o vírus chegou como fagulha em celeiro. Empregadas domésticas, trabalhadores da construção, estivadores, mulheres da limpeza, aqueles que fazem os trabalhos que os locais não querem, são tratados desde sempre como cidadãos de segunda: possuem autorização de trabalho, mas jamais serão residentes permanentes ou nacionais. Nem podem casar com singapurenses ou residentes, a não ser que o governo assim o permita. Agora os 323 mil invisíveis estão em isolamento rigoroso e mais de 20 dormitórios foram declarados “áreas de isolamento”.

Um mundo sem nós

Se calhar o que nos falta é imaginação para conseguir reflectir sobre uma Terra sem humanos. “Se alguma vez pensei num mundo sem nós? Bem, nunca tinha pensado passar por uma pandemia durante a minha vida”, afirma Alan Weisman, escritor de temas de ciência, numa entrevista ao site Mongabay. Os seres humanos tornaram-se arrogantes à medida que foram conquistando o planeta e o seu fim como espécie nunca nos passa pela cabeça porque também não nos encaixa no puzzle cerebral a peça de que este planeta poderia viver sem nós. Quando os filmes e os livros e as seitas e as igrejas falam do fim da humanidade do que falam é do fim do mundo, como se connosco tudo perecesse. Agora veio este vírus, que “nem sequer é muito letal, comparado com outros como o ébola”, chegou e até Nova Iorque, a cidade que nunca dorme, “está vazia”. “Temos mesmo de encontrar uma forma de viver neste planeta”, diz Weisman, porque os números estão a deixar-nos cada vez mais sem recursos. A cada quatro dias, um milhão de pessoas é acrescentado à população mundial, mas, “infelizmente, os economistas pressionam o crescimento populacional por causa da vantagem demográfica” e ninguém parece ter força para alterar a equação de mais gente, mais consumo e “mais trabalho barato”.

O trabalho que se esfumou

À volta de 1600 milhões de trabalhadores da economia informal – metade da mão-de-obra mundial – já perderam ou vão perder os seus meios de subsistência e a diminuição das horas de trabalho no planeta durante o segundo semestre deverá ser ainda mais significativa do que apontavam as primeiras previsões da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Comparado com o quarto trimestre de 2019, antes do rebentar da actual crise económica por causa do coronavírus, a diminuição deverá atingir 10,5%, o equivalente a 305 milhões de empregos que se esfumaram. Para o director-geral da OIT, Guy Ryder, “podemos esperar um impacto enorme em matéria de pobreza” porque milhões de empresas no mundo inteiro estão a lutar para sobreviver e perecerão sem ajuda pública. “Ninguém pode ser deixado para trás desta vez” quando se começar a recuperar as economias depois da pandemia, diz Sharan Burron, secretária-geral da Confederação Sindical Internacional. “Investimento massivo na saúde pública e nos cuidados de saúde é vital para garantir o acesso de todos e assegurar o respeito pelos direitos dos trabalhadores”, acrescentou. Mas, sobretudo, é preciso “um novo contrato social e as pessoas e o planeta têm de ser as bases para o futuro”.

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