Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades?

Se grande parte do trabalho na área das artes e da cultura é um trabalho intermitente, desenvolvido para múltiplas entidades empregadoras, com vínculos precários, muitas vezes traduzidos em contratos de apenas um dia, tal não pode justificar a ausência de regulação laboral ou dificuldades de acesso aos esquemas de protecção social.

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PAULO PIMENTA

Os tempos mudaram. Mas, na cultura, como em outras áreas, o actual contexto de pandemia e as medidas de confinamento vieram apenas tornar mais visíveis fragilidades há muito presentes. Em Portugal, o estado de emergência na cultura não é novo. Pelo contrário, tem marcado os últimos anos. Espelha-se nas reduzidas verbas orçamentais, nos modelos de financiamento público, amplamente criticados pela sua insuficiência e pela natureza concursal. Espelha-se também nas precárias condições de trabalho e de vida de muitos profissionais.

Num inquérito de 2016, o CENA – STE (Sindicato dos Músicos, dos Profissionais do Espectáculo e do Audiovisual) refere que 50% dos profissionais inquiridos trabalhavam a recibos verdes, 12% com contrato de trabalho a termo, 8% sem vínculo laboral e 8% com outro tipo de vínculo. Ou seja, apenas 22% dos trabalhadores inquiridos não estavam numa situação precária. O mesmo relatório refere que entre 2012 e 2014 a maior percentagem de rendimento anual destes profissionais se situava entre os 0 e os 3000 euros. Se assumirmos os 3000 euros como valor máximo, verificamos que corresponde a um valor médio mensal de 250 euros, muito abaixo do limiar de pobreza, que em 2014 era de 421,75 euros mensais.

Recentemente, a mesma estrutura lançou um questionário para avaliar as consequências da COVID-19 para os profissionais desta área, concluindo que, na sequência do cancelamento de espectáculos, 67% dos inquiridos perderão dois a três meses de actividade e que serão necessários, pelo menos, quatro a seis meses para que todas as actividades canceladas sejam repostas ou substituídas. Adicionando a este dado o facto de 85% dos profissionais inquiridos serem trabalhadores independentes, sem qualquer protecção laboral, facilmente percebemos a gravidade da situação.

Se grande parte do trabalho na área das artes e da cultura é um trabalho intermitente, multipatronal, com vínculos precários e de curta duração, tal não pode justificar a ausência de regulação laboral ou dificuldades de acesso aos esquemas de protecção social. Deve, isso sim, traduzir-se num regime específico – o estatuto de intermitência – que se adeque às particularidades deste tipo de trabalho. Porque se pede a um músico, a um actor, ou a um técnico de luz que tenham em dia as suas obrigações fiscais e as suas contribuições para a Segurança Social e depois se dificulta o seu acesso ao subsídio de desemprego, à baixa por doença ou, como agora em tempos de pandemia, ao apoio financeiro extraordinário concedido pela Segurança Social? Algo parece estar errado nesta balança de direitos e deveres.

O campo dos trabalhadores das artes e da cultura é vasto e envolve um conjunto diversificado de profissões. Importa, por isso, conhecer a multiplicidade e as especificidades das suas condições de trabalho e as suas necessidades, sobretudo no que toca à protecção laboral e social. Esse deve ser o ponto de partida para um trabalho conjunto entre os profissionais do sector, o Ministério da Cultura e o Ministério do Trabalho e da Segurança Social no sentido de uma (re)invenção de um regime laboral mais justo e adequado às particularidades destas profissões. Esta é a forma de assegurar a criação de melhores condições laborais e sociais no presente, permitindo a construção de carreiras contributivas regulares que possibilitem a estes trabalhadores equacionar um futuro digno. Os tempos mudaram, esperemos agora que mudem as vontades.

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