Cá se fazem, cá se pagam

O objectivo desta pequena nota é chamar a atenção para a forma como se iniciaram e desenvolveram alguns dos grandes desastres que moldaram a nossa História. Comportamentos e atitudes de agressão, por vezes irreflectidos, criaram as condições para o aparecimento de vinganças que vieram a ter resultados ciclópicos. Vejamos, num rápido sobrevoo, os mais recentes ajustes de contas que continuam a perdurar na nossa memória colectiva.

Os desejos de reparação e de vingança pelos sofrimentos e prejuízos causados pela pandemia originada na China, cruzada que emociona os acólitos do Presidente Trump necessitados de fazer esquecer a sua quota de responsabilidade pelo que se está a passar nos Estados Unidos, é mais um capítulo da interminável saga bíblica descrita como a aplicação da regra do olho por olho, dente por dente, que, como vamos ver, é responsável por uma interminável lista de catástrofes feitas pelo homem vingador. O que da Bíblia não se retira, mas que o conhecimento da História nos faculta à saciedade, são as ondas de choque que resultam desses ajustes de conta purificadores, postos em marcha pelos mecanismos de vingança das nações. A regra bíblica do olho por olho está por sinal bem distante do ensinamento cristão que estipula a regra do perdão e a de dar a outra face.

Vejamos, num rápido sobrevoo, os mais recentes ajustes de contas que continuam a perdurar na nossa memória colectiva:

Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial

É, porventura, o mais conhecido episódio dum ajuste de contas, com origem no Tratado de Versalhes, que humilhou o povo alemão obrigando-o ao pagamento de reparações impossíveis de honrar. Este quadro de punição foi impulsionado por Clemenceau, primeiro-ministro francês, cuja cegueira de vingança nacionalista o levava a acreditar que a humilhação da Alemanha seria o ponto final do comportamento imperialista germânico. Como viemos a descobrir após muito sangue, suor e lágrimas, Versalhes funcionou ao invés como o combustível do nazismo, electrizando um povo na obtenção da vingança total. É certo que o nazismo necessitou de outro ingrediente que só surgiu vários anos mais tarde, quando a desolação económica provocada pela crise financeira de 1929 abriu as portas da loucura. O acerto de contas que os nazis vão fazer com os seus vizinhos vai levantar a maior onda de selvajaria da História, que ainda hoje envergonha toda a Humanidade. Sublinhe-se que, no pós-guerra, os americanos não iriam cometer o mesmo erro de Clemenceau, pois optaram por impor à Alemanha uma Constituição democrática apoiada em milhões de dólares do plano Marshall. Roosevelt, ao contrário de Clemenceau, era coerente com a sua fé Cristã.

Rússia na Segunda Guerra Mundial

Este capítulo de vingança corresponde às últimas fases da Segunda Grande Guerra. O desenrolar da agressão nazi a leste e o nível de sadismo evidenciado sobre as populações civis nos territórios da União Soviética vão servir de guião central aos soldados soviéticos que haviam perdido pais, irmãos, mulheres e familiares, assassinados numa demonstração de puro gozo sádico pelas SS. Muito mais que o medo de Estaline ou a fé no comunismo, os soldados tinham uma missão primeira de vingança a cumprir, para a qual a sua própria vida era indiferente. A forma como os soldados alemães foram tratados em Estalinegrado e, depois, a violência que recaiu sobre os civis em Berlim, são sobretudo fruto da vingança.

Japão nos anos 20/30

São conhecidas as páginas sanguinárias da incursão imperialista do Japão nos anos 30, primeiro sobre a China e depois sobre quase toda a Ásia durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazis do oriente não desmereceram dos seus aliados arianos em selvajaria, fanatismo e ausência dos mais elementares valores humanistas. São momentos que ainda hoje causam calafrios. O que é menos conhecido é o percurso anterior de humilhação que a democracia nipónica dos anos 20 (sim senhor, a democracia japonesa da altura) sofreu dos confrades ocidentais, europeus e americanos, que se recusaram a reconhecer direitos de cidadania à raça dos pequenos amarelos. De boicote em boicote por parte dos ocidentais, o poder no Japão cai nas mãos de um exército fanatizado por uma narrativa de sabor histórico e nacionalista. Enquanto na Alemanha a República de Weimar cai às mãos dos nazis, no Japão, a frágil democracia que só acumulava humilhações internacionais morre às mãos de generais que ofereceram, tal como Hitler aos alemães, a vingança da honra nacional sobre os estrangeiros.

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Cartaz com a bandeira militar japonesa e o retrato de Hideki Tojo, ex-general do Exército Imperial japonês e primeiro-ministro do Japão durante a Segunda Guerra Mundial REUTERS/Bobby Yip

China nos sécs. XIX e XX

Quem conhece um pouco da China já foi confrontado, ainda que de forma não explícita, com duas características socioculturais omnipresentes: a saudade de uma narrativa mítica de pertença ao mais antigo império do planeta e a raiva pelo que os ocidentais (com a notável excepção dos Portugueses) fizeram à China, durante mais de um século, até ao fim da Segunda Guerra Mundial. São conhecidas as guerras do ópio do século XIX, episódios incríveis em que as potências ocidentais impunham militarmente a corrupção da sociedade chinesa para daí tirarem proveito comercial próprio. Ficou, igualmente, para sempre na memória chinesa a humilhação imposta pelos estrangeiros aos seus dirigentes e imperadores. A vitória dos marxistas na China é, antes de tudo, a vitória dos heróis nacionais contra os estrangeiros que eram, para os chineses, a personificação absoluta do mal.

Expulsos os estrangeiros e tendo, numa primeira longa fase, como única exportação a ideologia, a vida torna-se muito complicada para os chineses. Apesar da dimensão geográfica e humana, a China manteve-se como um país pobre sem meios para aspirar a glórias passadas. Ora é isto que a mudança estratégica operada por Nixon/Kissinger nos anos 70 vai alterar e, ao fazer o génio sair da garrafa, o Ocidente vai assistir, sem qualquer capacidade crítica, à ressurreição de um gigante que lhes vai oferecer o milagre do consumo barato e do capitalismo sem fábricas. Enquanto no Ocidente, por facilidade, irresponsabilidade ou apenas por mera incompetência, se espera que, por efeito mágico, a riqueza traga à China e à sua população os valores humanistas ocidentais, o que se veio a descobrir é que a China aspira sim a acertar as contas com o seu passado imperial e que um regime autoritário lhes parece ser a melhor opção. A forma primária e imbecil como a administração Trump fala em se vingar dos défices, e agora em exigir reparações pela covid-19, é, seguramente, uma receita inconsequente e perigosa, sobretudo para os Estados Unidos.

A Rússia após a queda do muro de Berlim

A vitória do Ocidente sobre o império comunista soviético, por desistência deste, trouxe a liberdade a metade da Europa, que, tendo sido um prestigiado centro da cultura ocidental, viveu umas décadas como entidade adormecida, funcionando como sucursal de segunda classe do império russo. Mas enquanto a Europa Central se reencaminhava para um novo concerto de Nações com a adesão à NATO e à União Europeia, os povos da Rússia descobriam que, com a liberdade, veio o caos absoluto, o desarticular de todas as estruturas organizacionais e económicas, o desemprego, o fim da protecção social, a fome e o campo aberto para a pilhagem e roubo do que era assumido ser a propriedade de todos. Difícil imaginar em que é que se tornaram as vidas de cidadãos honestos, profissionais competentes e dedicados, de cientistas e de artistas de craveira internacional.

No entanto, o Mundo Ocidental assistia, algo divertido, ao fim do comunismo e estava descansado porque agora na Rússia se respirava liberdade. O novo mundo russo fazia até surgir personagens curiosas que compravam palácios e clubes de futebol em Inglaterra. Só que liberdade sem pão não tem grande razão. O desespero, a raiva e o ódio de todo um povo vão ser canalizados por Putin para uma nova ordem cuja razão de ser é a reconquista da glória perdida. Claro que as coisas poderiam ter corrido de outra maneira. Ao contrário do que aconteceu na Alemanha e no Japão que, depois da derrota, beneficiaram de uma intervenção que lhes permitiu a reconstrução económica, na Rússia não foi isso que aconteceu.

Mas apesar de todo o ódio ao Ocidente, a Rússia já não é o Império que julgava ser quando, sentada sobre milhares de ogivas nucleares, se rodeava de muitos países amigos dispostos a desestabilizar os americanos. Hoje, a capacidade da Rússia está limitada ao papel de perturbador global, suportada pelas suas equipas informáticas, e com o desplante de não se coibir de enviar, pelo mundo fora, esquadrões da morte para tratar da saúde dos seus filhos mais incómodos. Não sabemos como este irritante e perigoso parceiro irá evoluir, mas o acerto de contas com o Ocidente, a confusão nos EUA e a possível desagregação da Europa não ajudarão certamente.

Itália pós-covid-19

O último exemplo do preço a pagar por maldades e humilhações exercidas sobre todo um povo ainda não aconteceu. Está no prelo. Por incompetência e egoísmo, a União Europeia manteve-se alheia às monumentais dificuldades com que a Itália (e a Grécia) se viu defrontada com o tsunami humano migratório provocado pela fome e pela guerra. A Europa não viu, não ouviu e não disse nada, e os democratas italianos europeístas deixaram aos populistas a tarefa de chamar as coisas pelo seu nome. Não resolvida ainda esta dificuldade, a Itália cai fisicamente sob a pandemia de covid-19, num quadro de desolação e morte só equivalente a uma guerra total. E o que fazem os parceiros europeus? A começar pela Áustria, que se veio a descobrir ter sido afinal um foco poderoso de contágio nas suas estações de ski, fecha a fronteira para evitar a peste italiana. Depois, a Alemanha que proíbe a saída de material médico. O drama italiano tem mesmo um clímax surreal com a chegada a Itália de ajuda... chinesa e depois russa. Onde estava a Europa? O que é, afinal, a Europa? Este filme ainda está, no entanto, nas cenas iniciais e os próximos capítulos podem vir a revelar consequências desastrosas para o futuro da Europa, em prejuízo dos seus 500 milhões de cidadãos. A ver vamos.

Uma regra bíblica esquecida

Uma notória excepção à regra bíblica do olho por olho, dente por dente está a ser praticada pelos próprios seguidores do Livro. O povo judeu, vítima de genocídio quase absoluto pelo nazismo alemão, assumiu, pelo exemplo dos seus sobreviventes, o objectivo do perdão, mesmo que o esquecimento não seja possível. Eloquente a forma como decorrem as relações entre o Estado de Israel e a República Federal da Alemanha. Extraordinário o papel de artistas judeus na vida cultural alemã de hoje. Olho por olho foi um ensinamento voluntariamente afastado.

O objectivo desta pequena nota é chamar a atenção para a forma como se iniciaram e desenvolveram alguns dos grandes desastres que moldaram a nossa História. Comportamentos e atitudes de agressão, por vezes irreflectidos, criaram as condições para o aparecimento de vinganças que vieram a ter resultados ciclópicos. É que quando embarcamos em aventuras justiceiras, seja por actos, pensamentos ou obras, deveríamos primeiro parar para pensar.

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