Petróleo: um negro engodo

No meio desta esquizofrenia, em que é difícil perceber quem andamos a tentar enganar, a crise que vivemos vem abanar profundamente o sector petrolífero e trazer-nos a esperança de entregar à geração que se segue um planeta viável.

Datam da década de 50 os primeiros estudos científicos que concluíram que a queima de combustíveis fósseis estava a conduzir ao aquecimento global, sendo que em 1965 tanto a indústria quanto os responsáveis políticos (pelo menos nos EUA) tinham conhecimento deste facto e da sua gravidade.

Essa é, portanto, a data considerada como ponto de partida para um estudo do Climate Accountability Institute, que avaliou a contribuição da extracção de petróleo nas emissões totais de dióxido de carbono e metano, até hoje lançadas para a atmosfera. A conclusão é que só as 20 principais empresas petrolíferas são responsáveis por uns impressionantes 35% de todas as emissões dos últimos 55 anos – impacto tornado evidente pela surpresa de cidades que, ao fim de décadas e em virtude de uma pandemia, voltaram a saber que têm céu.

Na lista dos maiores contribuidores estão empresas que nos são tão familiares quanto a Shell, a BP e a tristemente famosa Petrobras, ora detidas pelos respectivos Estados (em países como o Irão, Emiratos Árabes, México, China ou Venezuela) ora por empresas accionistas (nos EUA, França, Holanda ou Inglaterra). 

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O Acordo de Paris, os esforços de cooperação internacional tendo em vista o combate às alterações climáticas e a meta estabelecida na COP-25 de Madrid, de limitar o aquecimento global a 1,5º até ao fim do século, fariam supor que estas e as demais empresas exploradoras de petróleo iriam alterar gradualmente o seu modelo de negócio, por exemplo, investindo em energias renováveis.

Contudo, no final de 2019, as suas intenções eram diametralmente opostas, de acordo com um estudo apresentado no The Guardian. Embora algumas destas empresas começassem a dar passos nessa direcção e, pontualmente, a prever uma redução da extracção (é o caso da Venezuela, embora por mera incapacidade de fazer face às sanções impostas pelos EUA), o facto é que das 16 empresas cujas previsões numéricas eram conhecidas, resultava um aumento médio previsto de 8,3% até 2030, sendo que nas restantes quatro companhias os investimentos traçados não eram mais promissores. Prevendo um acréscimo de produção na ordem dos 37,6%, a companhia holandesa dominava a lista, seguida de perto pela americana ExxonMobil, que antevia um aumento de 35% sob os seus impactos astronómicos. Mais recentemente, no final de Abril, o mesmo periódico dá conta que as petrolíferas americanas têm em curso um investimento de 300 mil milhões de dólares, com base no qual esperam aumentar a produção de plástico em 40% até 2030 – manifestando também aí a sua indiferença face ao colapso ambiental.

Em consonância, continuam a ser lançados concursos para exploração de novas reservas, de que são exemplo duas em Angola no fim de 2019, para não ir mais longe, e que, conforme prazos habituais, deverão estar operacionais passados dez anos de avultados investimentos, que terão de ser compensados.

Em síntese, enquanto a Europa se comprometia a reduzir em 7,6% ao ano as emissões de GGE’s até 2030, a OPEP estimava que o pico da exploração fosse atingido em 2040 (residindo na actual crise a dúvida quanto ao estreitar desta contradição).

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Em Abril, o barril de petróleo atingiu pela primeira vez valores negativos REUTERS/Angus Mordant

Quando sabemos que, para o evitar e limitar o aquecimento global, é determinante que 2/3 das reservas conhecidas de petróleo sejam mantidas onde estão (o que exige um acordo global sobre quais as reservas que devem ser exploradas), o que vemos é a extracção entregue a uma lógica de mercado pura, alheia a cotas e a critérios, que estão por estabelecer.

Esses critérios, urgentes, deverão basear-se no impacto nos ecossistemas, no património construído e nas comunidades; e garantir a preservação das áreas mais relevantes no combate às alterações climáticas – o que implica que se mantenham intactas as reservas situadas nos países em desenvolvimento.

Naturalmente que o ónus pela não exploração de uma riqueza própria, em benefício da humanidade, não pode ser imputado aos países em causa (mais pobres e que menos têm contribuído para as alterações climáticas), devendo ser repartido. Foi esta ideia que, em 2007, levou o Presidente do Equador, Rafael Correa, a propor ao mundo prescindir da exploração das reservas do seu país, situadas sob o Yasuni National Park, caso tivesse apoio internacional. O seu plano previa a criação de um fundo, administrado pela Nações Unidas e cujo financiamento dependeria de capitais públicos e privados, com interesse em múltiplas actividades – tais como a exploração de energias renováveis no Equador e a gestão sustentável de áreas naturais e florestas. Infelizmente, ao fim de vários anos de negociações, Correa acabaria vencido, anunciando em 2013 que iria avançar com a exploração da reserva de petróleo do seu país.

Os longos anos de negociações serviram, contudo, para apurar um modelo institucional e de financiamento que pode servir de base a uma gestão global do crude, permitindo que nações pobres sentadas sob poços de petróleo possam concorrer ao financiamento, dando seguimento ao objectivo último de Correa: a transição do actual modelo económico, baseado na extracção de petróleo, que manifestamente tem falhado na redução da desigualdade e da pobreza, para um outro baseado na sustentabilidade e na justiça.

Dito isto, importa lembrar que, embora as petrolíferas não possam ser desresponsabilizadas (até pelo imenso lobby que movimentam, atrasando políticas que lhes são desfavoráveis), actuam dando resposta a uma procura. Assim, se por um lado cabe à comunidade internacional traçar um acordo para gestão das reservas petrolíferas, é à sociedade e aos governos que cabe assegurar a diminuição da procura, incentivando o desenvolvimento de tecnologias alternativas (muitas das quais já existem) e modelos urbanos menos assentes no automóvel particular.

Infelizmente, tal esforço está longe de ser apreciável: o subsídio global para apoio às energias limpas é de 100 mil milhões/ano, contra um subsídio aos combustíveis fósseis estimado em mais de 370 mil milhões de dólares/ano – algo impossível de justificar numa indústria que apresenta enormes impactos ambientais e na saúde humana, para além de externalidades com custos económicos avultados. E ainda mais difícil de compreender, quando estudos indicam que apenas 10 a 30% dessa verba seria suficiente para garantir a transição para energias limpas e uma drástica diminuição das emissões de GEE’s. Nas palavras do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, “o que estamos a fazer é usar receita dos impostos, portanto dinheiro de todos nós, (…) para destruir o mundo”.

O engodo, contudo, não se resume à saúde humana e ambiental. Conforme nos explica Jorge Almeida Fernandes neste artigo, o maná petrolífero raramente incentiva os Estados a diversificar a economia, funcionando como uma droga, que impede o desenvolvimento de uma economia salutar e fomenta a corrupção – acabando por empobrecer os povos e por tornar extremamente vulneráveis as economias que dele dependem. Angola é, também neste aspecto, um exemplo que conhecemos bem.

A dependência do petróleo tem, além disso, sido determinante na geopolítica mundial, empoderando países pouco ou nada democráticos, ao mesmo tempo que promove um ocidente grandemente dependente da energia externa. A bem da democracia, esta é uma arquitectura global que urge contrariar, através da maior autonomia energética da Europa. A qual, por sua vez, pode ditar a mudança do paradigma global.

Por cá, dando um passo na direcção certa, o Governo nomeou em Março de 2018 um grupo de trabalho para identificar os “incentivos fiscais prejudiciais ao ambiente”, depois de Portugal ter recebido de Bruxelas claras recomendações para resolver a sua incoerência: por um lado, firmando compromissos internacionais que obrigam a reduzir o consumo de energias fósseis e, por outro, incentivando o seu consumo. As conclusões continuam sem ser conhecidas, mas sabe-se que os “incentivos perversos” aos combustíveis ainda valem 422 milhões de euros, prevendo-se a sua progressiva eliminação, a bem de uma fiscalidade verde, que pode servir de rampa de saída da crise que se avizinha.

Até lá, e aproveitando o quadro fiscal que temos, a Galp segue os passos das suas congéneres e não só mantém projectos em onze países, como acaba de anunciar a intenção de duplicar a sua produção petrolífera, ao mesmo tempo que investe numa falsa imagem de transição para energias limpas. Em plena crise e apesar da contestação em torno do tema, a empresa de que o Estado é accionista (detendo 7,48% do capital, através da Parpública) distribuiu dividendos no valor de 318 milhões de euros, na sua Assembleia Geral, ocorrida a 24 de abril. Lucros esses em parte resultantes de uma fiscalidade legal, mas nem por isso moral, já que a Galp é uma das 16 empresas do PSI-20 que pagam os impostos na Holanda, em prejuízo do seu país.

No meio desta esquizofrenia, em que é difícil perceber quem andamos a tentar enganar, a crise que vivemos vem abanar profundamente o sector petrolífero e trazer-nos a esperança de entregar à geração que se segue um planeta viável.

Enquanto a OPEP luta por uma “rápida recuperação”, com a Rússia a ponderar queimar o petróleo que não foi escoado na fase de lockdown, os especialistas procuram adivinhar o futuro da indústria petrolífera divergindo nas suas previsões. Certo parece ser que a alteração do panorama energético vai depender da evolução da pandemia e de uma resposta corajosa, coerente e ambiciosamente verde por parte da Europa.

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Cada vez mais vozes defendem que as empresas petrolíferas e aquelas que directamente as alimentam, como a aviação e a indústria automóvel, fiquem nesta fase entregues a si mesmas ou sujeitas a apoios fortemente condicionados. Tese que é suportada por um estudo da Oxford University, que concluiu que projectos sustentáveis criam mais empregos, apresentam uma melhor relação custo-benefício para os governos a curto termo e tendem a reduzir custos a longo termo. Antevendo o aperto, a indústria pesada alemã escreveu uma carta conjunta, dizendo que quer tornar-se mais sustentável, mas que precisa de financiamento para tal.

Também por parte da população, o caminho para uma economia que priorize o ambiente parece livre: de acordo com um inquérito levado a cabo em 14 países, 65% do mundo deseja uma recuperação verde. Será desta?

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