Sobre as apps covid-19

O principal obstáculo às aplicações covid-19 não é a segurança ou a privacidade. É a probabilidade de se transformarem num mecanismo eficiente de apoio ao desconfinamento.

A utilização de aplicações nos dispositivos móveis para enfrentar a covid-19 começou tal como o vírus na China. Permite controlar os cidadãos de uma forma totalmente inaceitável para os nossos padrões. Talvez por isso as soluções de rastreamento de contactos que surgiram depois em Singapura, na Coreia do Sul e agora na Europa são alvo de grande controvérsia sem qualquer fundamento técnico.

Qualquer das soluções propostas (PEPP-PT ou DP-3T) ou mesmo a original de Singapura (“open trace”) são de adoção livre e baseadas em processos de anonimização que tornam qualquer utilização maliciosa, se não impossível, pelo menos muito pouco interessante. Comparados com os dados pessoais que partilhamos, nas dezenas de aplicações e serviços que temos subscrito (incluindo públicos), estamos a falar de algo incomparavelmente mais inócuo, seguro, escrutinado e acima de tudo útil para a nossa segurança e futuro.

O principal obstáculo às aplicações covid-19 não é a segurança ou a privacidade. É a probabilidade de se transformarem num mecanismo eficiente de apoio ao desconfinamento. No consórcio de investigação do IST que estuda este problema identificamos vários constrangimentos. Nenhum deles está associado à privacidade ou segurança que nos parecem asseguradas.

Primeiro a tecnologia bluetooth não é particularmente boa para detetar a proximidade entre duas pessoas, depende muito do tipo de dispositivo, da sua posição e dos eventuais obstáculos (por exemplo alguém que esteja próximo, mas por detrás de uma barreira física poderá ser sinalizado como um contacto próximo).

Segundo, para ser um mecanismo eficaz para reconstruir cadeiras de transmissão é preciso que um elevado número de pessoas decidam instalar a aplicação e a usem de forma regular e ininterrupta. Existem imensas barreiras para esta adoção, desde a desconfiança sobre a utilização abusiva, passando pelas características e conectividade dos equipamentos usados pela população. Terceiro as aplicações em desenvolvimento estão concebidas invariavelmente para os serviços de saúde e não numa perspetiva de cidadania digital para ajudar a restaurar a segurança e confiança no desconfinamento.

Uma aplicação que apenas serve para eventualmente informar que estou potencialmente infetado (e mesmo assim com grande probabilidade de falha) não é, convenhamos, uma grande proposta de valor. Poderá ser numa altura de emergência em que as pessoas estão em estado de alerta, mas não será provavelmente nas próximas vagas quando for previsivelmente mais importante. Tornar o rastreio de contactos a funcionalidade chave da aplicação é uma precipitação. A possível reconstrução de cadeias de transmissão pelas autoridades de saúde é um “bónus” que poderá estar acessível numa perspetiva de cidadania responsável.

Não significa que não devemos investir numa (ou mais) aplicações digitais que permitam ajudar a mitigar a pandemia. Todavia essa eventual aplicação deve ser concebida como uma mais-valia clara para o cidadão. Deve ser centrada no apoio ao desconfinamento gradual aumentando a segurança e a confiança. Pode ajudar a população a compreender se está (ou não) a manter o distanciamento social mesmo que isso não resulte em rastreamento anónimo ou na partilha voluntária de dados.

Pode ser um jogo para ensinar a manutenção do distanciamento social em crianças ao mesmo tempo que ajuda a planear o risco nos grupos mais vulneráveis. Também pode ser uma plataforma voluntária de ciência cidadã em partilhamos informação anónima para ajudar a avaliar fatores como a mobilidade e a proximidade afetam o risco de infeção.

Mais do que rastrear infetados poderia permitir simular cenários e consciencializar a população para o risco. Naturalmente que pode ser compatível com outros esforços europeus, até porque somos um país que depende muito do regresso dos fluxos turísticos para restaurar a economia.

Portugal tem atualmente capacidade científica instalada ao mais alto nível, não só para desenvolver, mas acima de tudo para conceber e inovar uma resposta tecnológica à covid-19. São muitos os investigadores de Universidades e Institutos que estão a trabalhar nesse sentido. Vamos dar o nosso contributo, coordenado, isento e independente e deixá-lo ao escrutínio de todos e à decisão individual de cada um em instalar (ou não) uma aplicação e partilhar (ou não) os seus dados. Esta é a principal liberdade que felizmente não faz parte de nenhum algoritmo, mas simplesmente da cidadania de cada um.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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