A UE e a pandemia: egoísmo irracional, solidariedade marginal ou egoísmo racional?

Confrontada com a crise social e económica, cultural e ideológica, política e geoestratégica associada à presente pandemia, a União Europeia deveria regressar à lógica de “egoísmo racional”

Portugal e os outros países do Mundo ainda se debatem com os dramáticos problemas de saúde directamente resultantes da pandemia, mas lidam já, também, com as avassaladoras sequelas indirectas da mesma, de cariz social e económico, cultural e ideológico, político e geoestratégico. Para os cidadãos dos países membros da União Europeia — bem como para os cidadãos de muitos outros países — é, pois, fundamental antever de que forma a UE vai reagir à nova crise. As expectativas e os receios, as escolhas e os comportamentos, as condições de vida de centenas de milhões de pessoas dependem das decisões que vão ser tomadas, tanto pelos Governos e no âmbito dos Parlamentos nacionais, como pela Comissão Europeia e pelo Conselho da União Europeia.

Considero que é possível observar que, relativamente à atenuação da Pandemia, as decisões de eleitos e as escolhas de cidadãos em geral têm sido tanto mais operatórias (eficazes, justas e sustentáveis) quanto mais procuram ter em conta as diferentes propostas de reconstituição e análise que vão sendo aventadas pelas humanidades, pelas ciências exactas ou da natureza e pelas tecnologias relevantes. Atrevo-me, assim, a propor que cautelas metodológicas similares — a valorização crítica das diferentes propostas de reconstituição e análise que vão sendo aventadas pelas humanidades, pelas ciências sociais e pelas tecnologias relevantes — devem ser adoptadas no que concerne às decisões que eleitos vão tomar e às escolhas que cidadãos em geral vão fazer tendo por objectivo a superação da presente crise social e económica, cultural e ideológica, política e geoestratégica.

Visando antecipar, contextualizar e comparar tipos de soluções que a UE poderá vir a adoptar, diria que as mesmas oscilarão entre o “egoísmo irracional”, a “solidariedade marginal” ou o “egoísmo racional”. De forma a tentar fundamentar esta hipótese de interpretação, recorro a investigação historiográfica já produzida e divulgada acerca do modo como a Europa Ocidental lidou com algumas das principais crises globais ocorridas desde o início do século XX, nomeadamente, a Primeira Grande Guerra e a “Crise de 1929”, a Segunda Guerra Mundial e a “Guerra Fria”, a “Crise da década de 1970” e o imediato pós-“Guerra Fria”, a “Crise de 2008”.

Entre outros factores, o predomínio do “egoísmo irracional” (ou seja, do unilateralismo e do colonialismo ou do imperialismo, do nacionalismo proteccionista ou autárcico, do segregacionismo social e/ou étnico) levou à eclosão da Primeira Grande Guerra (1914-1918), à não-prevenção e, depois, à não-superação da “Crise de 1929”. Nos anos que se seguiram a 1918, diversas soluções — como as defendidas, por exemplo, por Woodrow Wilson, por John Maynard Keynes, pelo Partido Social-Democrata da Alemanha, pela Confindustria —, promotoras do multilateralismo e do reconhecimento do direito à autodeterminação, da democracia e da regulação de interesses sociais e económicos, foram derrotadas.

A recusa das hipóteses em causa acarretou, entre outros fenómenos, a deslegitimação da Sociedade das Nações e a interrupção de muitos processos de independência de territórios não autónomos, a emergência dos fascismos ou do estalinismo e a generalização da violência de massas, a permanência da supremacia da teoria económica marginalista e a ascensão do corporativismo ou do comunismo, a hiperinflação (alemã e outras) da primeira metade da década de 1920 e a “Crise de 1929”/a Grande Depressão, os conflitos militares localizados da década de 1930 e a Segunda Guerra Mundial/o Holocausto.

Inversamente — de forma parcelar embora —, perante a Segunda Guerra Mundial e a “Guerra Fria”, sob a liderança dos EUA, os países da Europa Ocidental com regimes políticos abertos optaram pelo “egoísmo racional”, isto é, pelo multilateralismo e pelo reconhecimento do direito à autodeterminação, pela democracia e pela regulação de interesses sociais e económicos. Assistiu-se à criação da ONU e à aplicação do “Plano Marshall” no âmbito da OECE, à preferência pela CEE por contraposição à EFTA, ao predomínio da teoria económica keynesiana e do modelo de “Estado-Providência”, à promoção de uma globalização regulada e do desenvolvimento integrado, à melhoria generalizada das condições de vida das populações e à redução das desigualdades sociais.

Face à “Crise da década de 1970” e ao pós-“Guerra Fria”, os países da Europa Ocidental com regimes democráticos voltaram a modificar a estratégia adoptada. Escolheram, a partir de então, uma postura de “solidariedade marginal”, o que significou, nomeadamente, a hegemonia da teoria económica monetarista e a globalização neoliberal, crescimento económico com aumento da instabilidade e das desigualdades, regresso paulatino ao unilateralismo à escala global e no seio da CEE/UE, desmantelamento progressivo dos “Estados-Providência acompanhado por crescente radicalização ideológica e política, crises sócio-económicas e diagnósticos deliberadamente enganadores quanto à natureza das mesmas.

Tendo em conta, também, quer o modo como se lidou com a “Crise de 2008” — misto de “egoísmo irracional” e de “solidariedade marginal” por parte dos Estados membros e da UE —, quer as sequelas daí decorrentes, defendo que, confrontada com a crise social e económica, cultural e ideológica, política e geoestratégica associada à presente pandemia, a UE deveria regressar à lógica de “egoísmo racional”. Faço-o porque penso que as concepções dominantes nas duas últimas décadas já implicaram perda de peso da UE na economia mundial e no sistema de relações internacionais, aumento da instabilidade económica e social e ampliação das desigualdades, a saída do Reino Unido da UE e a consolidação de maiorias parlamentares/de Governos com tendências autoritárias na Hungria e na Polónia, reafirmação de ideologias darwinistas sociais e de organizações de extrema-direita em muitos outros Estados membros.

Faço-o, finalmente, porque considero que todos os países integrantes da UE — a começar pela Alemanha e pelos outros Estados mais desenvolvidos — ganhariam, tanto com a transferência negociada, no seio da UE, de recursos dos países mais desenvolvidos para os países menos desenvolvidos, como com a estruturação de políticas económicas, fiscais e sociais comuns e equitativas. Beneficiariam, igualmente, da readopção das teorias económicas keynesiana e estruturalista (“Estado-Providência” incluído) com o propósito de assegurar desenvolvimento integrado e sustentável, da reintrodução de uma globalização regulada e da atenuação do dumping social e ambiental, da renovação da parceria estratégica com os outros Estados democráticos e desenvolvidos/de desenvolvimento intermédio, do aprofundar da cooperação com países emergentes/subdesenvolvidos/“Estados falhados”, do apoio a processos de transição de ditaduras (formais ou informais, autoritárias ou totalitárias) para democracias, do apoio a novos processos de integração continental ou sub-continental.

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