Empresa de brindes vende 14 milhões de euros em máscaras e batas em semanas

Câmara de Cascais foi a principal cliente pública da Enerre, tendo adquirido quase nove milhões de euros em milhões de máscaras e milhares de batas, termómetros e tendas, entre 16 de Março e 24 de Abril.

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Paulo Pimenta

Uma empresa portuguesa especializada em brindes, bordados e fardamento vendeu, por ajuste directo, 14,6 milhões de euros em material de protecção, incluindo máscaras, batas, luvas e termómetros, a diversas entidades públicas em apenas seis semanas. Tal significa que, em menos de um mês e meio, a Enerre – Produções e Representações triplicou o valor da sua última facturação (4,9 milhões de euros) referente a todo o ano de 2018.

A Câmara de Cascais foi a principal cliente pública da Enerre, tendo comprado à empresa quase nove milhões de euros em diverso material de protecção, entre 16 de Março e 24 de Abril. Na lista de entidades compradoras, disponível no portal de contratos públicos, as Forças Armadas surgem em segundo lugar, com três ajustes directos que superam, no total, os dois milhões de euros. Com um contrato de 1,3 milhões, a Câmara de Lisboa aparece na terceira posição.

No entanto, os 14,6 milhões são apenas uma parte das compras realizadas pelas entidades públicas à Enerre, neste período extraordinário em que passou a ser possível ao Estado e às autarquias recorrer aos ajustes directos para aquisições acima dos 20 mil euros. O objectivo deste regime excepcional criado pelo Governo em 13 de Março foi o de facilitar a resposta às necessidades urgentes de abastecimento resultantes da pandemia de covid-19, dispensando concursos públicos.

Lourenço Rosa, sócio-gerente da Enerre, admite que o valor global é superior, uma vez que forneceu muitos hospitais públicos, que, segundo o PÚBLICO verificou, ainda não surgem no portal. A única unidade de saúde que já colocou os elementos do contrato naquele site foi o Hospital de Évora, que demorou mais de um mês e meio a divulgar o negócio de 80 mil euros para compra de uma quantidade desconhecida de máscaras FFP2.

O empresário garante que o que fez a diferença foi a experiência de 15 anos que a empresa tinha em importações da China e o facto de ter um escritório em Xangai que permitiu montar uma operação logística “muito eficiente”. Lourenço Rosa explica que não foi difícil arranjar fornecedores na China, o problema principal foi transportar o material para Portugal. “Trouxe o primeiro avião com material hospitalar da China, em meados de Março”, diz com orgulho.

Para isso teve que fretar um avião, pagar adiantado, sem ainda ter recebido qualquer pagamento. “Corri um risco grande. Correu bem, mas podia-me ter destruído”, resume. Começou com um avião por semana, mas, neste momento, já freta três Antonov por semana. Os riscos, alega, multiplicaram-se nas últimas semanas, com a evolução da pandemia em todo o mundo. “Neste momento, os aeroportos chineses estão atolados. Têm 200 aviões para carregar por dia, mas não têm capacidade para isso”, afirma. Por isso, há muitas empresas, como já lhe aconteceu, que fretam aviões e trazem os aparelhos vazios ou pouco cheios. “Fretei um avião e só consegui que trouxesse um terço da carga que era suposto transportar”, exemplifica.

Não revela a margem de lucro que pratica, mas admite que esta varia em função da quantidade vendida. Lourenço Rosa não nega que esteja a ganhar dinheiro, mas repete que já doou diverso equipamento de protecção a lares e a IPSS. Além disso, frisa que os preços que pratica são um dos seus factores competitivos. Ao que junta o cumprimento dos prazos de entrega e a qualidade do material. “Fomos recomendados pelo Ministério da Saúde aos hospitais”, garante. Negando qualquer tipo de favorecimento, desfia um rol vasto de clientes privados: SONAE (proprietária do PÚBLICO), Pingo Doce, grupos CUF, Luz Saúde, Lusíadas, Trofa Saúde, farmácias. E revela que ainda exporta para o Brasil, Espanha e Alemanha.

Cascais compra em nome de outras câmaras

No conjunto das entidades públicas, a Câmara de Cascais destaca-se por ter comprado à Enerre milhões de máscaras e milhares de luvas, de batas e de viseiras, termómetros e tendas no valor total de quase nove milhões de euros, formalizados em 11 contratos. O material tem sido distribuído por profissionais de saúde, polícias, bombeiros, instituições particulares de solidariedade social, associações do concelho e pela população.

O presidente da Câmara, Carlos Carreiras, precisa que é necessário subtrair uma parte substancial deste valor, uma vez que a encomenda mais volumosa, de 4,9 milhões de euros, foi feita em conjunto com os 18 municípios da Área Metropolitana de Lisboa, apesar de ter sido Cascais “a liderar”. Este contrato é, aliás, apenas assinado por Carlos Carreiras. “Agora, [as outras câmaras] vão-nos pagar”, revela.

A despesa só desta autarquia será da ordem dos cinco milhões de euros, “nesta primeira fase”. Mas Carlos Carreiras adianta que até ao final do ano os gastos globais do município com equipamento de protecção e outro material e despesas necessárias para combate à covid-19 deverão totalizar “entre 15 a 20 milhões de euros”.

Não é muito dinheiro para uma câmara com a dimensão de Cascais? Admitindo que quis estar “um passo à frente” apesar de isto não ser “um campeonato entre câmaras”, o autarca não considera que a despesa seja avultada, tendo em conta o que está em causa. “A Câmara de Cascais tem contas robustas e sólidas e a questão financeira não é a prioridade nesta altura”, responde. “Tivemos a percepção de que iríamos precisar de material de protecção para o combate à pandemia e a primeira preocupação foi encontrar fornecedores que garantissem” preços aceitáveis, produtos certificados, que cumprissem prazos e que fossem idóneos, explicou ao PÚBLICO.

Mas um dos factores que mais pesou na decisão foi o facto de a Enerre ter escritório na China e de ser fornecedor “do próprio Exército”. Carlos Carreiras assegura que não tomou a decisão sozinho. “Reuni à minha volta, informalmente, oficiais e generais com formação neste tipo de situação de crise”, além de académicos e “especialistas de várias áreas”. Foi tudo “levado a reuniões de câmara” e está a ser enviado para o Tribunal de Contas, garante.

O porta-voz das Forças Armadas, comandante Pedro Serafim, explica que o material foi adquirido para equipar o hospital militar com equipamentos de protecção. Foram compradas 140 mil batas descartáveis e outros tantos protectores de calçado, além de 161 mil máscaras. O comandante adianta que a instituição nunca tinha contratado a Enerre e decidiu fazê-lo depois de consultar a plataforma online de compras públicas ACINGOV.

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