Polícias de si próprios

Ninguém se vigia bem a si próprio. Mas porque deveríamos, então, enfaticamente, substituir-nos ao polícia em vigiarmo-nos, como se fôssemos ele?

Um polícia com responsabilidades hierárquicas incita, a propósito da crise pandémica e das regras derivadas do estado de calamidade: “Que cada um seja o polícia de si próprio…”. A seguir vem a conversa da responsabilidade.

Mas vejamos: a polícia é quem, no Estado, detém, instrumentalmente, o monopólio da violência legítima, onde se inclui não só a violência física mas a violência sobre os direitos fundamentais dos cidadãos, por exemplo no estado de emergência ou calamidade, impedindo-as de circular. Quase que deixo de lado a questão de podermos não concordar com as razões normativas do polícia/estado, que bem podem obrigar ou pedir desobediência, já que a minha questão é mais funda. Ainda que me reveja nas razões policiais do Estado, devo eu agir como um “polícia de mim próprio”? 

Ser polícia de si próprio implica um vigiar-se constantemente e um dissecar-se contínuo, um dilaceramento permanente, já que (se ainda estamos vivos) há sempre algo na nossa ação e consciência que escapa ao domínio do normativo e que, portanto, estaria sempre em falta, provocando angústia normativa e psicológica (quanto mais não seja por não termos a certeza se estamos a “fazer bem”). Cada um de nós tem sempre desejo a mais do aquele que deve, um gesto que é um excesso social, mesmo que não seja positivamente proibido (mas às vezes sim), que nos envergonha. Mais do que isso. A nossa consciência e a nossa ação são opacas a nós mesmos. A ideia de uma permanente vigilância de si, de um perpétuo estádio de autoanálise, não pode senão conduzir à catástrofe psicológica, já que toda a autoanálise inclui um ponto-cego, um espaço de invisibilidade de si que é infranqueável. Ninguém tem completa consciência de si: das relações causais entre os seus pensamentos/desejos e ações, entre as suas ações e outras ações, entre as ações de outros e os seus desejos e pensamentos. A consciência já não é, de há muito, o centro do teatro de nós mesmos, incluindo, e sobretudo, em questões de medo, mas também, e de que maneira, em questões de política e ética.

Ninguém, pois, se vigia bem a si próprio. Mas porque deveríamos, então, enfaticamente, substituir-nos ao polícia em vigiarmo-nos, como se fôssemos ele? Só se for para auxiliar o polícia. Mas porque auxiliaríamos nós o polícia a vigiar-nos, se nós mesmos o podemos fazer, mesmo que de modo incompleto?

Há aqui um salto que é preciso dar. Se eu tenho o dever de me vigiar a mim mesmo, como um polícia me vigiaria, em nome da norma sanitária e política, e uma vez que esse agir sempre seria limitado, o que se segue é que eu devo vigiar as minhas relações causais, os meus encadeamentos, portanto, o meu próximo, como a polícia, que não me vigia só a mim mas a todos.

Convidar-me a agir como um polícia perante mim próprio é, então, convidar-me a agir como um polícia perante os outros, transformar-me num colaborador permanente da polícia. Mas, neste caso, já não haveria uma verdadeira distinção entre polícia e não polícia e, portanto, ou seríamos todos polícias ou uma milícia nacional de vigilantes, em que o monopólio da violência legítima (incluindo, claro, a recolha de informações) se diluiria numa concorrência pela máxima eficácia vígil e pela máxima virtude do cumprimento rigoroso da lei. Mas já não seríamos um Estado de Direito.

A distinção entre a polícia e os cidadãos é, em democracia, nuclear. A ideia razoável segundo a qual a segurança pública é tarefa colaborativa das comunidades e das polícias, em proximidade, não inibe a necessária distinção de responsabilidades e deveres entre polícias e cidadãos em geral, condição de possibilidade, aliás, de qualquer relação. 

Os polícias, por exemplo, têm desde logo certos direitos de cidadania comprimidos, justamente para demarcar a sua condição de membrana protetora dos corpos cívicos e dos cidadãos, capacitados por saberes técnicos especializados, agindo de modo externo e neutral relativamente ao seu natural desacordo e conflitualidade. Os poderes físicos aumentados da polícia, por exemplo o direito/dever do uso da força ou de recolha de informações, não constituem direitos suplementares de certos cidadãos particulares, mas antes a sinalização e o poder da sua condição de instrumento da liberdade dos cidadãos, usados sob supervisão de outros corpos do Estado, a começar pelos tribunais, detentores de parte do poder soberano democrático. Não há, pois, uma sociedade policial exterior à cidadania, mas polícias ao serviço da cidadania.

Pelo seu lado, os cidadãos não são polícias (independentemente dos seus deveres para com a segurança pública e a lei), e não só porque os polícias têm saberes técnicos especializados que lhes não são acessíveis, mas também porque é função e dever dos cidadãos a fiscalização dos próprios corpos policiais, eventualmente a resistência perante leis e ordens ilegais e ilegítimas, o que não pode ocorrer, a não ser como subversão cívica e democrática, senão através de uma razoável distanciamento estratégico entre polícias e cidadãos.

Por último, a questão da metáfora. Dizer que “cada um deve ser polícia de si próprio” é certamente uma metáfora. Mas não simplesmente uma metáfora enquanto efeito linguístico estetizante (o que já seria pouco edificante) ou comparação incompleta e meramente alusiva entre formas linguísticas. É bem mais que isso, e esse mais é relevante e, no caso, perigoso para a vida democrática. As metáforas, para além de compararem palavras, conceitos ou práticas (de forma mais ou menos incompleta ou imprecisa) dão forma ao nosso modo de experienciar o mundo, criam certo modo de agir e afirmam socialmente novas semelhanças entre conceitos, palavras e formas de ação. Em suma, as metáforas que usamos afirmam uns e negam outros sistemas categoriais de valores e formas de ação social, dando coerência e sentido às nossas formas de vida. As metáforas não são meros adornos linguísticos mas poderosas ferramentas para a criação e a engenharia sociais, profecias, intencionalmente ou não, suscetíveis de autorrealização. Ora, nos tempos que correm, convém não descurar as metáforas policiais que, bem entendido, não são exclusivas dos polícias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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