As flores na Quarentena

Testemunho de Maria Nascimento, técnica de análises clínicas do Hospital Pulido Valente, em Lisboa. “Acordo muito cedo antes de ir trabalhar. Estou estranhamente reconciliada com a minha profissão. É como se lhe tivesse encontrado uma importância, uma dignidade, que sempre lhe foi negada.”

A primeira coisa que fiz, ou melhor: a última, antes da quarentena, foi ir comprar flores. Enchi o carro até mais não poder. Flores!

Tinha estado em casa, às voltas no meu terraço, incrédula, estupefacta. Nunca tal coisa tinha acontecido, nem jamais a teria sequer imaginado…. Olhei em redor, a tentar antever a sensação de confinamento a que todos iríamos estar submetidos. Não seria o meu caso, como profissional de saúde, mas olhei para os prédios vizinhos, para os ecrãs das janelas onde famílias inteiras, pessoas na maioria idosas, iam passar muito tempo. O tempo quase todo. Então tive uma urgência de fazer alguma coisa, contrariar a tristeza de tudo aquilo, recusar uma inevitabilidade, lutar contra algo desconhecido e ameaçador. Assim dei início à minha quarentena: a fazer um jardim.

Desde então, tenho estado pouco tempo em casa, na verdade. E, quando estou, é como se desse à costa depois de um naufrágio. A salvo, mas por pouco tempo…. O tempo que resta, perco-o no inferno das compras, cozinho como se fosse alimentar um regimento, o meu esfomeado regimento de tele-educandos

No hospital, enfrento o maior desafio, a maior dificuldade que alguma vez senti em 30 anos de profissão. Nos primeiros dias andámos permanentemente em estado de choque. Havia uma necessidade urgente, imperiosa, de mudar tudo, de repente. E, para isso – sabemo-lo – é preciso tempo.

Só que não havia tempo. Trabalhávamos num frenesim. Havia que reinventar toda a nossa forma de agir, adequar procedimentos, criar protocolos, regras. Choviam e-mails, telefonemas, normas, directivas, orientações. Era preciso gerir, implementar, adequar à realidade. Tudo tinha que ser feito para proteger os doentes – e os profissionais. Tudo era para ontem.

Ainda agora andamos, talvez já não a mil, mas a cem à hora. Temos dúvidas, questões, incertezas. Temos medo, medo de adoecer, como tem sucedido com tantos colegas, medo de contaminar a nossa família. Hesitamos antes de abraçar os filhos. Falamos com os pais, de longe. Estamos obcecados pela desinfecção, pela descontaminação. Há um ar de fim do mundo, uma espécie de loucura que nos assalta. Nada nos preparou para isto, dizemos.

Será? Todo o esforço destes anos, a consolidação das equipas, a energia que concentramos no trabalho, a nossa capacidade de mudar, até de improvisar – na verdade, tudo isto está hoje presente. E faz a diferença. Tenho a sorte de pertencer a uma pequena (mas enorme) equipa que funciona unida, que se apoia mutuamente, que torna este novo normal mais habitável. 

Andamos sempre cansados. Cansados do esforço acrescido ao esforço que já era, sempre foi, e que agora é cada vez mais. Cansados de respirar de máscara o tempo todo. Cansados de ter que pensar cada gesto, de calcular cada risco, da concentração total. A distração, como se sabe, é a morte do artista.

Trabalhar em urgência implica gerir o stress, senão não vamos longe. A minha gestão particular passava por uma série de coisas que agora estou impossibilitada de fazer. Como jantar com os amigos. Ou passear. Ou fazer voluntariado… As saudades que eu tenho, a falta que me faz! Há um distanciamento familiar que é doloroso.

Parece que, afinal, somos mais fortes do que pensamos. Ponham-nos à prova, vá!

Acordo muito cedo antes de ir trabalhar. Estou estranhamente reconciliada com a minha profissão. É como se lhe tivesse encontrado uma importância, uma dignidade, que sempre lhe foi negada.

Vou ao terraço enquanto tomo café. Há flores, tantas flores. Cheira a maio. Respiro fundo e penso que vai ser um bom dia. Um de cada vez.

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