Quo vadis, Democracia?

Podemos dizer que a actual democracia garante que os melhores são eleitos para nos representar? Só a história e o povo poderão responder a esta pergunta.

Os que criticam a democracia podem ser divididos em dois grupos: os que defendem a instituição de um ou outro regime político não democrático e os que argumentam que o actual sistema não é verdadeiramente democrático e que deve ser, por conseguinte, radicalmente reformado. Não raramente, os que criticam a democracia em que vivemos são inadvertidamente ou deliberadamente confundidos com os anti-democratas. Com igual regularidade, os que sujeitam a democracia actual a interrogações incisivas e pertinentes são prontamente acusados de ansiarem nostalgicamente por um regresso a um passado autoritário ou, pior, totalitário. Esta estigmatização, tão imediata quão implacável, é uma forma de censura implícita que Mill, um dos pais fundadores do Liberalismo, criticou com inigualável argúcia numa das suas principais obras. 

Aos acusadores, dignos seguidores de Richelieu, não ocorre sequer a possibilidade de que a renovação da democracia liberal depende crucialmente da crítica substantiva. Comecemos com uma pergunta simples mas decididamente provocatória: a democracia em que vivemos garante que os melhores são escolhidos para nos representar? A questão do mérito geralmente suscita a ira da esquerda porque pressupõe uma hierarquização que, aos seus olhos, perverte o ideal da igualdade. Todavia, a mesma esquerda que habitualmente se opõe à defesa do ideal meritocrático, depressa o invoca implicitamente quando, por boas razões, critica líderes (Trump, Bolsonaro, etc.) que, de uma forma ou de outra, evidenciam uma indiferença patológica em relação aos mais veneráveis valores liberais democratas. O ideal igualitário presume a igualdade dos homens e das mulheres mas também institui uma hierarquia dos tipos de líderes (e de acções) que melhor representam este valor.

Thatcher é criticada porque as políticas económicas que implementou exacerbaram as desigualdades sócio-económicas nas ilhas britânicas. Sanders é elogiado porque defende políticas públicas cujo principal propósito é o de combater as desigualdades nos EUA. Portanto, o ideal meritocrático não desapareceu, como que por magia. Ou seja, todas as ideologias políticas, sendo acima de tudo constelações de valores prioritários, estabelecem hierarquias meritocráticas. Conferir primazia à igualdade é, quer queiram quer não, um acto discriminatório (defensável). 

A indefectível pirâmide persiste e, por mais que custe a muitos, não é indefensável à luz dos valores que servem de critério à hierarquização. Afinal de contas, os que defendem o ideal da igualdade não são tidos como iguais aos que defendem uma ou outra forma de desigualdade como “natural.” É, sem dúvida, um paradoxo fascinante: como é que o valor da igualdade pode justificar uma hierarquização, isto é, uma forma de discriminação e de desigualdade. Talvez seja possível libertar o ideal meritocrático do estigma que há muito o flagela. Regressando à interrogação inicial, complementado-a: à luz do ideal democrático-igualitário aqui usado como exemplo, podemos dizer que a actual democracia garante que os melhores são eleitos para nos representar? Só a história e o povo poderão responder a esta pergunta.

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