A excepção à excepção – crónica de uma manipulação

O Governo e o seu primeiro-ministro nada tiveram a ver com o assunto, pois é óbvio que, para autorizar uma tamanha excepção à excepção, eles não tinham que ser tidos ou achados!

1. Assim que o Governo anunciou, ainda sem texto normativo, os critérios que regeriam a aplicação da terceira declaração do estado de emergência, insurgi-me contra a forma como foi apresentada a excepção para o Primeiro de Maio. Fi-lo, nessa noite em debate na TVI, aliás, logo diferenciando a situação do 25 de Abril da situação do Dia do Trabalhador. Na verdade, o Governo referiu-se de forma vaga e imprecisa ao modo como poderiam decorrer essas celebrações de Maio, deixando no ar a aceitação de uma enorme excepção ao estado de excepção. Eis o que se afigurava totalmente inaceitável, por ser injusto, discriminatório e contrário aos mais elementares princípios do Estado de Direito. À medida que se foram conhecendo os contornos da interpretação que o Governo fazia da “abertura” contida no decreto presidencial, aprovado no Parlamento, a posição do executivo tornava-se cada vez mais insustentável. E quando António Costa veio, mais tarde, dizer que no fim-de-semana prolongado de 1 a 3 de Maio ficavam interditas as deslocações entre concelhos, a situação passou a raiar o absurdo. Como é possível dizer aos portugueses que não podem cruzar os limites de um município que a CGTP pode organizar uma manifestação com mais de mil pessoas? Ou pior, pode organizar por todo o país mais de uma vintena de manifestações? E que, para tanto, autocarros de manifestantes podem correr o país e varrer regiões?

2. Ao contrário do que uma imprensa meiga fez passar, a organização não foi irrepreensível e houve episódios de violação, decerto involuntária, dos protocolos de saúde. O que, de resto, era expectável e previsível e, por isso, desaconselhava a permissão daquele ajuntamento. Mas importa dizer com todas as letras, naquele contexto, mesmo que a segurança sanitária estivesse absolutamente garantida, uma manifestação daquele tipo seria sempre e inapelavelmente reprovável. Ela representa, antes do mais, um enorme desrespeito por todos os cidadãos que, com grande sacrifício, se têm esforçado por cumprir meticulosamente o confinamento. A ideia de igualdade e de tratamento igual é inerente à democracia e ao Estado de Direito e nada mina mais a confiança no Estado do que tratamento ostensivamente discriminatório. Mas aquela manifestação deu também um sinal errado, uma mensagem equívoca, estimulando e legitimando de futuro o incumprimento de regras e protocolos.

3. O Governo quis abrir uma excepção para uma central sindical. Sim, naqueles termos, naqueles precisos termos, foi o Governo – e não a oposição nem o Presidente – que quis abrir a excepção. É impressionante como o Governo, os seus apoiantes e até alguma imprensa quiseram “transferir” ou, pelo menos, “repartir” a responsabilidade. Quem ler o decreto presidencial e conhecer o contexto de emergência, não podia sequer imaginar que uma manifestação daquela amplitude e com aquele simbolismo (errado e contraproducente) pudesse alguma vez ser autorizada. É evidente que esse passe de mágica de endossar a culpa aos outros órgãos de soberania é uma simples manipulação política. Se o Governo e se o primeiro-ministro não quisessem, nunca uma manifestação com aquelas características teria sido admitida. Até a constante remissão para as autoridades de saúde, repetida à exaustão, se destina a tentar dissolver a responsabilidade cimeira do Governo numa asséptica responsabilidade técnica ou administrativa. Trata-se de passar a culpa do primeiro-ministro para a ministra e a directora-geral. E a ministra lá insistiu no cumprimento escrupuloso de normas técnicas para tentarem salvar a pele do Governo. Aliás, o itinerário do passa-culpas não fica por aqui. A ministra, numa entrevista em que teve uma prestação confrangedora, atirou a responsabilidade para a entidade organizadora, a saber a CGTP. Num exercício estranho, não resistiu à manipulação corporativa.

Numa palavra, a responsabilidade ou melhor, a culpa – porque aqui é nítido que há um sentimento de culpa – ou é do Presidente ou é da oposição ou é das autoridades de saúde ou é da central sindical. O Governo e o seu primeiro-ministro nada tiveram a ver com o assunto, pois é óbvio que, para autorizar uma tamanha excepção à excepção, eles não tinham que ser tidos ou achados!

4. A mais grave das manipulações – a manipulação religiosa – foi a tentativa de envolvimento da Igreja Católica, a ver se esta estaria capaz de dar a sua bênção. O Governo, ao facultar ao PCP e à sua central sindical, o que nunca devia ter facultado e o que nunca esteve disposto – e aí, bem – a facultar a outros, acabou por ter de se explicar. E como não há explicação plausível nem possível para semelhante contradição, pôs a ministra a sugerir e titubear que “até” poderia haver celebração com fiéis em Fátima. Para, no dia seguinte, se desdizer e fazer a distinção – que não é seguro que conhecesse bem – entre celebrantes e peregrinos (como se os celebrantes não tivessem podido sempre celebrar). A ideia era passar a “boa nova” de que se “a Igreja não fazia, é porque não queria”. A Igreja não mordeu o isco e reafirmou o que sempre dissera e que tinha, em tempo, transmitido ao Governo. Foi amiga e fê-lo com demasiada reverência – o que não lhe fica bem. Deveria ter afirmado o princípio, mas mostrado desagrado com a falsa expectativa que o Governo, para justificar o injustificável, acabou por criar nos crentes mais crédulos. Mas a hierarquia da Igreja portuguesa é muito dada à corte, nem sempre exercendo, com prudência mas firmeza, o seu múnus profético.

Eis a história de uma manipulação política, administrativa, corporativa e religiosa. Tudo serviu para tentar esconder a mão que verdadeiramente está por detrás do arbusto. Sem mão, não há manipulação.

SIM e NÃO

SIM. D. Manuel Vieira Pinto. Morreu o Arcebispo de Nampula, homem de fé, vertical e corajoso, que, sem fazer política, nunca fez obséquios ao poder nem omitiu um gesto de reconciliação.

NÃO. Ministério da Economia. O mesmo Governo que acede a festejos do dia do Trabalhador acumula atrasos nos pagamentos das situações de lay off, que deixam dezenas de milhares na penúria.

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