Os dois passos atrás

Uma coisa é adquirir pontualmente produção ao sector privado para recuperar o atraso provocado pelo esgotamento de recursos em resultado das exigências da pandemia. Bem diferente, muito diferente, é formalizar essa relação com a solenidade que uma decisão de um Conselho de Ministros lhe atribui.

Até ao momento, e já lá vão mais de 60 dias, mantive-me afastado das várias querelas que, daqui e dali, têm surgido a propósito das decisões tomadas pela equipa política do Ministério da Saúde. Com uma ou outra excepção, o que tem sido feito tem contribuído para que a situação epidemiológica em que nos encontramos esteja suficientemente equilibrada.

Coisa diferente é aproveitar o barulho das luzes e o turbilhão das vozes para retomar as relações privilegiadas com o sector privado, surgidas no meio de uma Resolução do Conselho de Ministros que, presume-se, pretendia-se que passasse despercebida. A relação público/privado, estamos lembrados, foi uma das controvérsias mais vivas que se travou durante boa parte de 2019, a propósito da Lei de Bases da Saúde, exigindo o sector privado a continuação do sistema herdado pelos governos de direita.

Como é do conhecimento geral, esteve-se perto da ruptura. É verdade que acabou por vingar a manutenção de uma porta aberta para regressarmos ao passado, à avidez por uns bons milhões de euros. Não tinha sido esse o resultado dos esforços de muitos, nem tinha sido essa a condição para a lei ser aprovada. Depois de todo o empenho demonstrado por todos os profissionais do SNS para conter uma pandemia da qual pouco ou nada se sabia, não havia pior sentido de oportunidade política para dar a conhecer uma resolução que desmerece toda essa dedicação, dando o mais negativo e insensível dos sinais, com o qual teríamos um desastre sanitário sem precedentes dentro de fronteiras.

Por isso, e em sinal de reconhecimento pelos milhares de horas passadas à cabeceira de muitas centenas de doentes nas condições mais críticas, o mínimo que se exige é que o ponto 7 da Resolução do Conselho de Ministros, aprovada em 30 de Abril, seja revogado e se honre a palavra dada em 19 de Julho de 2019. Transcrevo a passagem que ao assunto diz respeito: “(...) podendo, de forma supletiva e temporária, ser celebrados acordos com entidades privadas e do sector social (...), em caso de necessidade fundamentada.” Estas relações são uma figura do passado, que geralmente vem para ficar. É a retórica cujas linhas e entrelinhas são sobejamente conhecidas, sabemos identificar o seu histórico, a sua árvore genealógica, que há muito devia estar morta e enterrada.

É diferente, muito diferente, casuisticamente ser necessário adquirir produção ao sector privado e social para recuperar o atraso provocado pelo esgotamento de recursos em resultado das exigências da pandemia. Bem diferente é formalizar essa relação com a solenidade que uma decisão de um Conselho de Ministros lhe atribui. Sabemos como essas figuras jurídicas acabam. Começam geralmente no seio de assuntos desconexos e terminam no regaço de ligações particularmente perigosas para o interesse público.

Há, escritas, milhares de páginas sobre o assunto, sobre as bóias de salvação que o SNS está sistematicamente a lançar sobre um sector cujo gosto pelo chantilly já faz parte dos anais da história. Não fosse haver sempre alguém pronto a servir o apetite voraz destes gourmets e o SNS não teria de viver à míngua de peditórios e donativos, e sobretudo não daria lugar à lamentável declaração sobre o que seria o SNS se não fosse o sector privado.

A Resolução agora aprovada não é menos do que uma afronta a quem passou centenas de horas à cabeceira destes doentes, de ventilador na mão e a dar o melhor de si para salvar quem ainda podia ser salvo. As decisões políticas têm um tempo próprio, uma oportunidade e uma pertinência, estão longe de ser um gesto que tanto podia ser realizado hoje como ao sabor dos caprichos do momento. Estão longe de ser uma futilidade servida entre dois parágrafos de uma Resolução. É que, se ainda estamos lembrados, a Lei de Bases da Saúde precisa, toda ela, de ser regulamentada, e foi logo pelo livro de cheques que se começou.

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