O desconfinamento confinado

A partir do momento em que o Governo avançou com o fantasma da calamidade para substituir a emergência, depois de insistir no teletrabalho obrigatório, nas máscaras nos transportes públicos e nas regras de segurança apertadas, o desconfinamento ficou condenado a ficar confinado.

O pequeno comércio de Elvas reabriu nesta segunda-feira as portas e houve quem visse nesse movimento uma tentativa “eufórica” de regresso à normalidade. Na Guarda, aconteceu o mesmo, mas em vez de euforia notou-se "nervosismo” e falta de “esperança” no aumento das vendas. Em todo o país, de norte a sul, quem esperava pelo dia da libertação, pelo triunfo da coragem em regressar à normalidade possível, pela abertura da economia ou pelo simples regresso do riso aberto às ruas das vilas e cidades desiludiu-se.

A partir do momento em que o Governo avançou com o fantasma da calamidade para substituir a emergência, depois de insistir no teletrabalho obrigatório, nas máscaras nos transportes públicos e regras de segurança apertadas, o desconfinamento ficou condenado a ficar confinado. Não havia alternativa.

O dia de ontem serve assim para tirarmos a prova definitiva de que se o Governo e as autoridades têm o poder e o dever de criar climas emocionais e estados de espírito que influenciam os comportamentos, o rumo do combate à covid-19 está nas mãos da liberdade de escolha dos cidadãos. Muitos continuarão a ter, como sempre tiveram, a obrigação de sair de casa, de enfrentar os transportes públicos e de trabalhar em fábricas ou oficinas.

Outros permanecerão no limbo do layoff ou terão entrado já no calvário do desemprego. Uns e outros estão na segunda linha dos que têm de lidar com o medo e com o perigo do vírus. Mas há depois uma mole imensa de pessoas que trabalham no Estado ou nos serviços que está disposta a tudo menos a ter de sair à rua sobre a qual paira o pavor da calamidade.

Ainda que haja a tentação de pegar nas fotografias das calçadas à beira-mar neste fim-de-semana ou no desaforo dos sindicalistas da CGTP para expor à cidade e ao mundo a tentação da irresponsabilidade, os portugueses não são loucos e continuam com medo. É por isso que continuarão a deixar as lojas de Elvas abandonadas à sua euforia e tratarão de cumprir os receios do comércio da Guarda.

Para o Governo, o confinamento voluntário é o melhor dos mundos. Para os cidadãos que podem ficar em casa, nada vai mudar. Para os agentes económicos do pequeno comércio local, é o confronto com a terrível realidade: não basta abrir as portas para que os clientes entrem. Com o passar do tempo, talvez todos se habituem a conviver com o vírus. Mas, até lá, com emergência e calamidade, prevalecerá o aviso que João Miguel Tavares fez no PÚBLICO há quase um mês, e que neste domingo António Barreto reiterou: “Fechar é fácil, abrir é difícil.”

Sugerir correcção