Dia 35: ajuda para combater preconceitos

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Ana,

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Estou com os cabelos em pé. Sim, esses que ainda não fui ao cabeleireiro cortar.

Mas não é por isso que estão em pé. Eriçaram-se quando ouvi num noticiário das 8 da noite falarem, repetidamente, no homicídio de um casal de avós, cometido por um “neto adoptivo”. Cognome reforçado no oráculo que corria em rodapé durante o decurso da reportagem. E não foi na CMTV. Já há uns tempos, os media fizeram o mesmo quando uma senhora foi esfaqueada pelo seu “filho adoptivo”.

Não aprofundei a história, nem uma, nem a outra, e não me interessam os contornos macabros do assunto, o meu ponto é que mais depressa se apanham os preconceitos do que um coxo. Ser assassinado por um filho ou um neto é um crime que nos repugna de tal forma, tão contra o mundo arrumadinho em que gostamos de acreditar viver, que procuramos uma explicação que nos retire da equação. Ao acrescentarmos a palavra “adoptivo”, resolvem-se logo dois problemas: por um lado, coloca a grande maioria das pessoas fora do grupo de suposto risco (“Não temos filhos, nem netos adoptivos, então estamos safos”), e por outro, insidiosamente transmite a ideia de que quem semeia ventos, colhe tempestades. Por outras palavras, estavam a pedi-las.

Mete-me raiva. Há anos que batalho a favor da adopção, que ainda só dá uma oportunidade a uma minoria ínfima das crianças que o Estado tem à sua guarda (ou seja, todos nós). E, mesmo essas, só chegam a uma família muito tarde, porque tribunais e equipas ainda resistem a aceitar que a biologia sozinha não chega, e que aquilo que faz de alguém mãe ou pai (e já agora avós) vai muito além disso. Por isso passo-me de cada vez que a comunicação social trata um crime hediondo como este como se os genes fossem dominantes, como se fosse natural que as crianças, “filhas sabe-se lá de quem!”, tivessem maior probabilidade do que as outras de “se virarem” a quem as criou.

Ainda pensei em ir buscar as estatísticas criminais, que provam que ser ou não adoptado não é chamado ao caso, mas percebi que só iria alimentar a ideia de que este tipo de abordagem é legítimo, e não o é. Os jornalistas, não podem cometer erros destes.


Mãe, 

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Não é só ofensivo para avós, pais e filhos adoptados ou adoptantes, como uma forma tenebrosa de perpetuar preconceitos.

Ontem, o nosso mini E. esteve horas “a trabalhar” no computador enquanto “falava” ao telefone (uma máquina de calcular) com o sócio do meu marido. Ao vê-lo imitar os trejeitos do pai, conversando enquanto carregava nas teclas e deixando cair uns “oh pá, a encomenda...”, e “Não, não, não”, assombrei-me (enquanto ria às gargalhadas) com a forma como os miúdos absorvem tudo o que fazemos. Pequenos gestos que nos parecem imperceptíveis, tons de voz, expressões faciais, nada escapa. A informação recolhida é depois rapidamente processada e reproduzida.

Acredito mesmo que cada criança vem com uma alma só sua, um temperamento único, e que a forma como vai conjugar tudo o que tem dentro de si com o que recebe de fora, está bem para lá do nosso controlo, mas não tenho dúvida de que temos um papel fundamental nas pessoas que virão a ser. Os nossos preconceitos contagiam os nossos filhos e estruturam a sua forma de pensar o mundo. Mas, o pior, é que tantos destes preconceitos passam por constatações de facto, e muitas vezes nem reagimos quando alguém se refere “aquela senhora gorda ali ao fundo”, ou conjuga as palavras “terrorista” com “muçulmano”, “jovem de raça negra” e “assalto”, ou “neto”, “adoptado” e “homicídio”. E eles registam.

Temos mesmo de fazer um melhor trabalho de policiamento interno, pescando os nossos próprios preconceitos, questionando-os, para que não passem entre os pingos da chuva. E fazendo este exercício alto, para que eles aprendam também a fazê-lo. Mas que os jornalistas, que conhecem o poder dos media, sejam tão frequentemente reféns destas armadilhas, é grave. Alerta de que também nos cabe ensinar os nossos filhos a escrutinar o que ouvem e lêem.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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