Quando esta vida voltar ao normal...

Já ninguém sabe muito bem o que fazer, como reagir, mas o sorriso desarma-nos, os braços estendidos e um longo abraço aos saltos de alegria, cheio de saudades, gargalhadas e ainda mais cabelo.

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John Simitopoulos/Unsplash

... vou continuar a falar à noite com os amigos  pela internet para poder ir logo para a caminha no quarto ao lado, e assim é a idade.

Agora a sério, que rir também é preciso: quando esta vida voltar ao normal, vou correr rua fora e bater à porta de todos os nossos amigos, sem medo, com um pouco de receio ao princípio e de parte a parte, já ninguém sabe muito bem o que fazer, como reagir, mas o sorriso desarma-nos, os braços estendidos e um longo abraço aos saltos de alegria, cheio de saudades, gargalhadas e ainda mais cabelo.

Vamos rir uns dos outros e do ponto a que chegámos, eu com uma cabeleira farta de caracóis onde as mãos não se encontram, ainda ontem perdi o telemóvel no meio do cabelo e tenho um ninho de rolas a crescer no topo da cabeça, os homens com uma barba imensa e as mulheres com o cabelo a meio das costas. E enquanto fazemos fila para o cabeleireiro vamos brindar à vida, ao fim e ao princípio, ao primeiro dia do resto das nossas vidas. 

Quando esta vida voltar ao normal, vamos retomar as viagens, a recompensa no fim de um período de trabalho, vamos voltar ao sol, ao sul, à história, às cidades e às gentes, procurar outros paladares, modos de viver e pensar, alimentar e cultivar a curiosidade, apreender, viver a dois. Vamos voltar ao teatro e às exposições, correr os museus todos de uma vez só e ao princípio só para ter a certeza de como ainda estão todos aqui, ninguém fugiu e a vida voltou ao normal e depois, gradualmente, regressar a uma vida que não depende apenas e somente do trabalho, uma vida que pode muito bem, e agora sabemo-lo todos em cada centímetro de pele, acabar amanhã e já agora que tenha valido a pena. Não é pedir muito e não precisamos de voltar ao matadouro do trabalho. Não como dantes e nunca mais como dantes, basta usar a memória. As oportunidades não são só para quem mais pode e mais tem, são para todos, outras pandemias virão e isto é uma oportunidade.

E, por fim, vou voltar a casa, à casa de onde nunca quis sair e saí e vou voltar como se nunca de lá tivesse saído, a subir a rua de calçada como sempre subi a cumprimentar cada pedra e a agradecer o seu sacrifício em nome deste caminho, a percorrer com as mãos as paredes caiadas e rugosas dos muros e das casas, a sentir as paredes com os dedos, a guiar-me pelas paredes com os dedos enquanto fecho os olhos e ergo o corpo ao sol, um sol português a falar-nos nesta língua quente junto aos braços e às pernas, quase a queimar, o sol a levar-nos ao colo rua acima e eu sem nunca abrir os olhos, sem nunca chegar a casa, nunca cheguei, já não preciso, bastou-me voltar.
 

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