Cuidar em tempo de pandemia

Para que se promova e garanta uma cultura organizacional que valorize o cuidado centrado na pessoa, muito há para melhorar, partindo da parca fatia orçamental canalizada, a fraca avaliação da qualidade de serviços e bem-estar e a deficitária especialização em cuidados e empowerment e formação de equipas (principalmente num segmento profissional, como auxiliares de acção directa).

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Paulo Pimenta

Várias fontes indicam-nos que Portugal está a passar por um cenário demográfico sem precedentes, onde enverga a quinta posição enquanto país mais envelhecido do mundo, precedido por Finlândia, Grécia, Itália e Japão. Partindo do pressuposto que o quantitativo de pessoas com mais de 65 anos está a aumentar e com maior propensão para a comorbilidade, quando o envelhecimento e um surto pandémico, como o do novo coronavírus, se combinam, tendem a ser vistos como extremamente problemáticos.

Considerando a heterogeneidade das pessoas mais velhas que vivem em resposta social como as Estruturas Residenciais Para Pessoas Idosas, torna-se imperativo a criação de estratégias geradoras de bem-estar, como a elaboração ou adaptação de espaços devidamente articulados, a criação e manutenção de uma equipa multidisciplinar, a valorização e respeito pela pessoa na garantia da sua autonomia e, sobretudo, a conservação ou geração de relacionamento e criação de laços empáticos. Um role de mecanismos que contemplam uma filosofia de cuidados defendida por Carl Rogers, intitulada person-centred care (abordagem centrada na pessoa). Ademais, a evidência científica aponta que, além de melhorarem a vida das pessoas institucionalizadas, as acções centradas na pessoa estão também associadas a efeitos positivos na equipa de profissionais, nos domínios da satisfação e capacidade de atendimento individualizado, redução de stress e burnout.

Mas como desenvolver esta abordagem em tempos de pandemia, quando aos nossos idosos residentes em resposta social é imputada a possibilidade de receberem visitas dos seus familiares, acrescendo a escassez do afecto e o peso da finitude? E onde muitos dos profissionais saem para trabalhar com medo e sem garantia alguma que não retomam infectados a suas casas, correndo o risco de infectar os seus familiares?

Tendo em conta que a abordagem centrada na pessoa se pode constituir como uma filosofia cuja implementação se torna exigente, soma-se ainda uma conjuntura social e económica sem precedentes que contribui para um exponencial incremento de lacunas e vicissitudes no seio das respostas afectas ao terceiro sector.

Ainda que o terceiro sector não tenha sido pensado em caso de pandemia, poder-se-á constatar que, mesmo de forma hercúlea e no limiar das suas capacidades financeiras, as instituições produzem esforços e sinergias na garantia de uma prestação de cuidados de qualidade, prevenindo, porventura, um cenário de contágio, como servem de exemplo:

  • a capacidade de realizar novos testes à covid-19;
  • a elaboração de planos de contingência, ainda que sem competências para tal;
  • a consciencialização face à problemática do coronavírus;
  • a confecção de máscaras de protecção individual com apoio de iniciativas da sociedade civil;
  • a adaptação das estratégias de comunicação com familiares das pessoas institucionalizadas, através de chamadas telefónicas ou videochamada, por forma a esbater o peso da saudade;
  • o incentivo à utilização de competências remanescentes fazendo com que a pessoa se sinta útil;
  • a elaboração de actividades significativas no reconhecimento da personalidade e escolhas da pessoa;
  • conservação das rotinas espirituais e religiosas, agora através da emissão de rádio ou televisão;
  • e a capacidade de saber escutar e suportar a pessoa, tendo em conta o impacto que uma crise pandémica possa espoletar, como o medo, desconforto e nervosismo.

Para que, efectivamente, se promova e garanta uma cultura organizacional que valorize o cuidado centrado na pessoa, muito há para melhorar, partindo da parca fatia orçamental canalizada, a fraca avaliação da qualidade de serviços e bem-estar e a deficitária especialização em cuidados e empowerment e formação de equipas (principalmente num segmento profissional, como auxiliares de acção directa).

A própria gestão e insuficiência de recursos humanos e respectivos turnos, quer por força de eventuais baixas médicas ou por forçosa necessidade dos profissionais permanecerem em casa para cuidar dos seus filhos, ou o aconselhamento por parte do governo às instituições de poderem recorrer a bolsas de voluntariado face à carência de recursos humanos, o que não permite apenas observar a desvalorização na criação de valor daqueles que se formam em prestação de cuidados no seio do IEFP e outras entidades, como nos conduz a um pensamento perverso de que qualquer pessoa pode ou tem competências técnicas para cuidar dos nossos idosos, constituem também uma panóplia de desafios para uma melhor intervenção.

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