Gente insatisfeita que não vive de palmas

Actividades sem valor de mercado revelam-se essenciais. Mas continuam com fracos salários e poucos direitos sociais.

Primeiro foram os aplausos aos profissionais de saúde. E de seguida, de forma discreta, o louvar de actividades que se revelaram essenciais para o funcionamento da sociedade, nos supermercados, transportes, entregas ao domicílio, limpezas, fábricas, redes de água, quiosques de jornais, cafés e restaurantes em regime take-way, cuidadores, etc. Foram eles os imprescindíveis. Fizeram o mundo girar.

Cruzei-me com eles todas as manhãs. Com a senhora Joaquina, da mercearia, que há dias confessava, com ironia, que depois do falatório nos últimos anos sobre as virtudes da tecnologia, imaginava-se era em casa, substituída por um robô, inteligência artificial, big data, e outras coisas que tais, e não ali, submetida a uma situação difícil. Ou com o senhor Ulisses, do café, para dois saudáveis dedos de conversa e uma bica, ou com o senhor João, do quiosque dos jornais, que me confidenciava que também foi muito elogiado por não ter abandonado o seu lugar. “Bom de ouvir, mas mais direitos e rendimentos é que era”, dizia.

O pior, por vezes, era regressar a casa. Por todo o lado se via “ficar em casa”, mas muitas indústrias, fábricas e construção civil continuaram. Ao contrário do que parece ser a ideia que prevalece, parte significativa da população do planeta continuou a laborar e não em regime de teletrabalho. As obras do novo edifício da EDP, ao lado de onde moro, não pararam um único dia, desde o início do confinamento, e não parece que seja opção dos operários, sem outra alternativa, que não sujeitarem-se ao contágio. Resultado? A barulheira é tal, que muitas vezes vim para a redacção deste jornal, quase deserta, onde me deparava com três ou quatro colegas, seguranças e senhora da limpeza. A maior parte destas pessoas são invisíveis para os demais, precários e sem reconhecimento social, mas têm sido eles a tornar a vida social possível. Eles só sobrevivem indo trabalhar e os demais só podem estar em casa se assim acontecer. 

De repente, o mundo virou-se. Eliminamos o supérfluo e vimos que a economia real é a forma pela qual nos cuidamos. As actividades precarizadas tornaram-se vitais, apesar das condições em que operam tantas dessas pessoas, lutando por elas e pelos outros, enquanto nos interrogamos sobre o que fazem tantos administradores, accionistas, gestores, consultores ou especuladores, alojados nas suas segundas casas. E não foi apenas através dos mais fragilizados que o percebemos. Também devemos uma vénia a muitos cientistas, a sectores médios do mundo de trabalho, das humanidades ao ecossistema comunicacional, dos professores aos jornalistas ou aos agentes culturais, fazendo-nos repensar o mundo, reflectir, reduzir o desconhecimento, ver filmes ou entoar canções de resistência, produzindo compreensão e sentido para o colectivo. Ok. O conhecimento técnico é importante. Serve para vivermos. Mas cultura, e as humanidades, fazem-nos sentir vivos.

O confinamento fez-nos ver que aquilo que fomos considerando inútil como valor de mercado é o mais útil como valor de uso para viver. E, no entanto, mais uma vez, nos sectores médios, falamos de gente mal remunerada, com pouco reconhecimento social, mas também, muitos deles, alvo de aplausos. Exposto fica o funcionamento deficiente das políticas redistributivas. O problema não é a falta de recursos. É um modelo socio-económico incapaz de diminuir as desigualdades e desbloquear a concentração de riqueza. A ironia é que os que foram essenciais ao nosso estilo de vida, essa réstia de trabalho humano fundamental, são os mais expostos à contaminação, sendo que se acabassem por se retirar de circulação o sistema acabaria por claudicar.

E, apesar de tudo, o camaleónico capitalismo não irá soçobrar. Olhe-se para a publicidade. Há dois meses apontava ao desejo individualista: “Tu és o máximo! Compra este telemóvel e vais chegar ao topo do mundo.” Agora é ao coração colectivo: “Todos juntos vamos conseguir!” Adapta-se bem, mas dificilmente não haverá mudanças profundas. A não ser que as pessoas mais empobrecidas, tal como os sectores médios que já só conseguem sobreviver, e que são a larga maioria da população, se contentem com palmas. E não com segurança, direitos e melhores salários.

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