Um vírus que ressuscitou amizades antigas

O período de confinamento foi também um momento de reatar laços sociais, apesar da distância. “Esta pandemia intensificou a necessidade de reforço emocional das pessoas”, defende socióloga.

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Katie Treadway/Unsplash

Fechadas em casa mas com a janela que a Internet permite abrir para o mundo, Rita começou a falar com antigos amigos e até ex-namorados e Ana ressuscitou amizades antigas, daquelas com mais de três décadas. “Por um lado, estamos todos fechados em casa mas, por outro, a amizade ultrapassou as fronteiras geográficas e as temporais”, resume a socióloga Maria José Silveira Núncio. O confinamento permitiu a muitas pessoas reencontrarem-se.

Quando foi decretado o primeiro Estado de Emergência, a socióloga percebeu que tinha a “oportunidade única” de recolher testemunhos de todo o tipo, quase em tempo real. Os conteúdos que continuam a chegar-lhe por mensagem electrónica vão de relatos a poemas, passando por listas de supermercado e Maria José Silveira Núncio começa a chegar a algumas conclusões. Por exemplo, na lista das prioridades, uma delas é a amizade e a recuperação de amizades antigas neste tempo de incertezas.

“Não é bem como acontece no Natal, em que fazemos só um telefonema àqueles amigos que vemos menos”, explica a professora de sociologia do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa. Trata-se de uma coisa mais profunda: “Esta pandemia intensificou a necessidade de reforço emocional das pessoas.” Ainda será cedo para perceber a continuidade real destes contactos, adverte, mas existe uma vontade de reencontro “num tempo novo”.

Volta ao mundo à procura dos amigos

Apesar de se sentir “presa no paraíso”, em Aljezur, no Algarve, Rita Belo, 44 anos, produtora cultural e gestora de um restaurante, deu por si “a falar aos amigos espalhados pelo mundo”. Como já viveu em vários países, sentiu urgência em saber dos seus amigos mais distantes, sobretudo daqueles de que não sabia há alguns anos.

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Rita Belo é produtora cultural DR

De atacado, e sem se importar com os fusos horários, Rita contactou via Skype, WhatsApp e e-mail, e localizou amigos em vários pontos do globo: Japão, Nova Zelândia e Brasil.

Por exemplo, Guhen é seu ex-colega de Psicologia e vive em Tóquio. “Estava bem”, conta. Como já não se vêem há mais de cinco anos, ele ficou contente com a surpresa e quer retribuir a atenção da amiga. Como Rita sempre desejou conhecer o Brasil, decidiram reencontrar-se naquele país, mal lhes seja possível.

Ainda não sabem quando, mas Rita está determinada em cumprir a promessa. Talvez não possa ser tão cedo, até porque o seu amigo Diego, realizador que está neste momento em Belo Horizonte, traçou-lhe um cenário negro da realidade brasileira, desfia. “Estava revoltado com a forma como o Presidente está a tratar do vírus”, continua. Ficaram de manter o contacto e voltarem a encontrar-se em Londres, a cidade onde se conheceram.

Matt, um ex-namorado que trabalha como jardineiro hortícola numa plataforma de trabalho internacional, na Nova Zelândia, conta-lhe que as coisas estão a correr bem. “Ele estava super feliz e disse-me que não podia ter mais sorte, revela. “Até me disse que tinha um fraco pela primeira-ministra neozelandesa, pela forma como está a lidar com tudo”, acrescenta. Até agora, ainda não perderam o contacto e falam num encontro romântico de ex-namorados numa ilha da paradisíaca na Tailândia. O reatar de um romance? Rita prefere deixar a resposta em aberto.

Saudades e solidariedade

Ana Espregueira Mendes, de 53 anos, está à espera que o hotel onde trabalha, no Porto, possa reabrir. Até lá, vai tratando de tudo pela internet, a partir de Viana do Castelo, onde está com uma irmã e a mãe. Tal como Rita, também Ana combinou viajar com uma amiga de há 30 anos – amiga essa que está agora na Áustria, numa situação mais ou menos semelhante.

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Ana Espregueira Mendes trabalha em hotelaria DR

“Além de trabalharmos na mesma área, ela tem a mãe a viver sozinha em Portugal”, conta ao PÚBLICO. “Estamos na mesma situação e eu ofereci-me para ajudar, caso fosse necessário”, adianta. Diz que lhe telefonou sobretudo “por solidariedade” e porque andou a adiar vezes sem conta esse contacto. “Andamos sempre a mil e não há tempo para pararmos e pensarmos em nós”, acrescenta. “O vírus foi o pretexto para o telefonema e acho que ela gostou”, acrescenta.

Maria José Núncio refere que encontrou mais casos como estes e diz que, no domínio emocional, o vírus não é “o provocador da mudança, mas o seu acelerador”. E conclui que, nos testemunhos recolhidos, os portugueses estão muito “bipolarizados”, ou seja, são muito positivos ou muito negativos. “É como se não houvesse cinzentos”, sublinha.

Até agora, foi possível traçar quatro dimensões de análise: “A do receio, a das vivências pessoais e relacionais, a da resiliência e a de aceitação.” Assim, e também no plano da amizade, estaremos a entrar na última: “As pessoas falam no regresso a uma nova normalidade, usam mesmo a expressão ‘novo normal’.”

Nesta fase, a socióloga começa a dar conta de que “as pessoas precisam de fazer planos para o futuro”. São as tais viagens programadas por Ana e Rita, sem datas marcadas, mas com a expectativa de as fazerem com quem se voltaram a reencontrar. Passar do virtual ao real.

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