Não, não está tudo bem na escola: com fome ou com medo, ninguém aprende

Fingir que nada disto se passa é fazer da escola uma máquina, insensível aos tempos e afetos. Não sejamos a orquestra do Titanic que afundou sem nunca parar de tocar.

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Enric Vives-Rubio

Assumir que o ano letivo pode continuar como se a única mudança fosse não estarmos fisicamente na escola, que o contexto de cada família e pessoa não se radicalizou, é fingir que tudo está bem. Março fechou com mais 28 mil desempregados registados no IEFP do que fevereiro, num total de 344 mil, e 642 mil trabalhadores em lay-off: é quase 1/5 da população ativa portuguesa. As 700 escolas de acolhimento, em média, servem 18 mil refeições diárias a alunos do escalão A e B do SASE. Os alunos são familiares das mais de 20 mil pessoas infetadas no país e das mais de 900 mortas pela covid-19. Fingir que nada disto se passa é fazer da escola uma máquina, insensível aos tempos e afetos. Não sejamos a orquestra do Titanic que afundou sem nunca parar de tocar.

1. Deixados para trás. Nas primeiras semanas de encerramento das escolas do ensino básico e secundário, professores e alunos, independentemente das suas condições, tiveram de improvisar o ensino a distância. Agora, as orientações são para avançar no programa, já com a “telescola” e outras plataformas. Tudo isto num dos países europeus mais pobres (em 2018, 6.ª taxa de risco de pobreza mais elevada, 21,6%) e onde as desigualdades sociais entre alunos são mais marcadas (PISA, 2018). No ensino básico, 200 mil alunos não tem internet ou computador em casa; 7% daqueles com 15 anos não tem secretária e computador com acesso à internet; 34% das casas tem apenas um computador, colidindo o teletrabalho dos pais com o ensino a distância dos filhos (PISA, 2018). Verão, provavelmente, as aulas na TV, mas continuarão sem ligação à turma e à escola que, agora, são virtuais.

Os alunos de contextos mais desfavorecidos são quem mais depende da relação de proximidade com os professores, das bibliotecas, salas de informática e dos colegas para se orientarem no sistema e desenvolverem as suas aprendizagens. Quantos alunos com medidas de apoio à aprendizagem, dos TEIP, zonas empobrecidas, comunidades afrodescendentes, ciganas e imigrantes, dos PCA, cursos profissionais, CEF e outros – quantos dos nossos alunos – estão a ser deixados para trás?

2. As mãos invisíveis do particular e do privado. Se no mais das vezes são subfinanciadas, precárias e invisíveis, há associações locais que têm sido fulcrais, fazendo o vai-e-vem das impressões, entregas e devoluções das tarefas escolares e lançando campanhas para equipamento informático. Mas deverão, por princípio, ser o garante de direito à igualdade na educação? Ao mesmo tempo, as grandes editoras entram em ação vendo a oportunidade de criar a necessidade de novos “produtos” de ensino a distância, dando-se mais um passo na mercantilização e desigualdade na educação.

3. Forçar, controlar e domesticar o trabalho. O modelo seguido, prolífero nas formas de controlo do trabalho e assente no pressuposto de um elevado domínio de competências TIC, revela-se contraproducente numa escola em que 47,8% dos professores revela sinais no mínimo preocupantes de exaustão emocional (INCVTE, 2018). Todos sentimos o quão o trabalho se desregulou em tempo, carga, invasão do espaço doméstico e até como o direito à educação passou a depender dos recursos domésticos dos professores.

4. Vamos ter chumbos, faltas e exames? A não decisão do ME cria oportunidade para tiques autoritários de ameaça através das faltas, CPCJ ou da PSP (Escola Segura). Destoa-se dos vários países europeus que cancelaram os exames; das recomendações da OCDE que, em 2018, já defendia o fim dos exames de acesso ao ensino superior; do discurso passado desta mesma equipa ministerial sobre o fim das reprovações e exames. Sobretudo, passou-se por cima da vontade de diretores e alunos de suprimir os exames este ano (petição das Associações de Estudantes das Escolas Secundárias de Camões, Maria Amália Vaz de Carvalho e da Ramada), aqueles que se pretende que continuem e prestem contas do que aprenderam, quando o que estão a aprender não vem no programa e não lhes será perguntado.

5. Valores “mais altos” se levantam. Enquanto a DGS resguarda aqueles que a idade faz mais vulneráveis, o Governo manda abrir o secundário em maio, pondo em contacto direto turmas de dezenas de alunos e docentes com a mesma idade dos avós destes jovens (41% dos professores tem mais de 50 anos e a percentagem aumenta drasticamente no secundário). Porquê este refrear da prevenção? Por que não montar um modelo de acesso ao ensino superior aberto a todos/as, que não assente na seleção (reprodutora das desigualdades)?

Também nas creches, onde é quotidiano o contacto físico, se refreia a prevenção contra a vontade de muitos/as (petição “Não Abertura de Creches, Pré-escolar e ATL's pelo menos até setembro”). São convocadas a reabrir por razões economicistas que desvalorizam o risco de contágio: para que a força de trabalho de mães e pais possa estar disponível; para cortar as despesas do Estado com os apoios aos que tiveram de ficar em casa a cuidar dos filhos; e para estancar os efeitos da enorme contradição que é as creches e muito do pré-escolar não serem públicos, gratuitos e universais. Com a redução dos rendimentos, muitos/as deixaram de ter meios para pagar as creches. Também as creches e Jardins de Infância, muitas delas IPSS, se confrontam agora com problemas financeiros.

6. Para lá do online há tanto em falta. Comparativamente com ciclos anteriores, as desigualdades serão menores no ensino a distância do superior, pelo caráter seletivo deste nível de ensino e maior autonomia dos estudantes. Não nos esqueçamos, no entanto, que nem todos têm as condições tecnológicas, das residências universitárias com sinal de internet débil, quartos partilhados e ausência de privacidade. Que muitos são trabalhadores-estudantes, terão perdido os seus empregos, e têm tarefas familiares de cuidado em simultâneo. Que muitas/os se verão “à rasca” para pagar propinas.

Faltou da parte do MCTES a decisão de “suspensão imediata” do pagamento de propinas e o reforço da ação social. Por outro lado, a “flexibilização” que agora propõe, que pretende conjugar aulas presenciais e a distância, introduzirá uma nova rotura e representará uma sobrecarga de trabalho para os docentes, já exaustos.

7. Para tempos de exceção, soluções excecionais. A passagem administrativa e o serviço cívico estudantil (1975) são experiências a partir das quais deveríamos pensar soluções imediatas no quadro da covid-19, mas também a escola do futuro. Honrar abril, também é isso. Pelo menos no básico e no secundário, a passagem administrativa permitiria não reforçar desigualdades nem discricionariedades na avaliação desta educação de emergência a distância. O uso das notas do 2.º período não resolve o problema, pois é exatamente no 2.º período que os resultados dos alunos tendem a baixar, recuperando frequentemente no 3.º. Por isso, todos os alunos sem exceção deveriam transitar administrativamente (sem nota) este ano letivo. A “Cidadania e Desenvolvimento” deveria ser o centro mobilizador das escolas e comunidades educativas, porque seria uma aprendizagem contextualizada num momento histórico de grandes desafios. Se não conseguimos que a cidadania seja uma prioridade num momento como este, quando o será? Ao invés desta simulação estéril e desgastante, as escolas, professores e alunos deveriam ter sido convocados para, a partir dos seus contextos específicos, compreenderem e construírem respostas coletivas a esta crise, alargando horizontes e laços nas suas comunidades educativas.

Clara Amaro, Educadora de Infância
Cristina Roldão, Professora do Ensino Superior Politécnico
Filipa Fidalgo, Professora do 3.º Ciclo e Secundário, CEF, Profissionais, Vocacionais
Isabel Louçã, Professora do 2.º Ciclo
Marco Ferreira, Professor do 1.º Ciclo
Miguel Bento, Professor do 3.º Ciclo e Secundário

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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