O que já aprendi com a covid-19: breve relato de um médico de família

O verdadeiro teste português será após o levantamento do estado de emergência. As próximas semanas vão exigir mudança de comportamento, como o uso generalizado de máscaras.

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Manuel Roberto

No momento em que escrevo estas linhas, o vírus SARS-CoV-2 continua a trilhar um caminho devastador no nosso planeta. Perante este cenário dramático, o título desta crónica faz algum sentido? Julgo que é precisamente a seriedade do tema que impõe a necessidade de partilha. As vidas perdidas, os doentes que sobreviveram com sequelas e as suas famílias merecem que cumpra este dever: aprender com a pandemia e registar esse conhecimento.

Quando, há alguns meses, a doença estava a deixar um padrão distinto, foi a transparente troca de dados que permitiu o alerta na comunidade médica internacional. As melhores revistas científicas abriram rapidamente o acesso aos artigos sobre o novo coronavírus. Em Portugal, e de forma espontânea, foram criadas ou reforçadas redes informais entre colegas. Nesses primeiros dias de preparação, o meu telemóvel nunca teve tantas chamadas. Os webinars e as reuniões via Zoom ou afins sucederam-se. Criámos pontes entre especialidades médicas, instituições e comunidade. Com conversas francas de poucos minutos derrubaram-se muros outrora intransponíveis.

A célere resposta pelos Cuidados de Saúde Primários foi também facilitada pela autonomia das equipas. Os profissionais do Serviço Nacional de Saúde tendem a ser mais eficientes quando não estão limitados pelo espartilho piramidal. Esta ausência de micro-controlo não é sinónimo de anarquia ou ausência de hierarquia. Cumprindo as regras da Direcção-Geral de Saúde e com a liderança do Ministério da Saúde, a equipa que coordeno, à semelhança de outras unidades, encontrou a melhor solução local para garantir continuidade nos cuidados de saúde. Em poucos dias alterámos o circuito dos utentes, criámos salas de espera no exterior e mudámos a nossa prática clínica diária, que agora inclui muitas chamadas telefónicas. No outro lado da linha encontramos dúvidas, medos e anseios que tentamos aplacar. A Unidade de Saúde Familiar tem um trajecto seguro para os doentes que não podem dispensar uma consulta presencial. O Plano Nacional de Vacinação, só para dar um exemplo, nunca deixou de ser cumprido.

Os jovens médicos (incluindo, obviamente, os valiosos médicos internos) foram rápidos catalisadores da mudança e todos os dias se apresentam ao serviço com espírito de missão.

Por fim, gostaria de salientar a maturidade de muitos portugueses que ficaram em suas casas. Sem confinamento atempado tudo seria mais difícil, como podemos constatar ao analisarmos os dados de outros países.

Reconheço que o verdadeiro teste português será após o levantamento do estado de emergência. As próximas semanas vão exigir mudança de comportamento, como o uso generalizado de máscaras. Não obstante, quero acreditar que há uma maioria de cidadãos responsáveis que, com racionalidade e até humor, desmascaram os vendilhões das teorias da conspiração e os semeadores do pensamento mágico.

Sei que a história desta crise também é feita de passos em falso e desvios que importa corrigir. Mas hoje escolhi focar-me no que corre bem: a flexibilidade e pragmatismo de um SNS ancorado na ciência e na partilha de soluções. Um SNS em que os portugueses podem confiar e devem estimar.

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