Primeiro de Maio e a geração millennial: (ainda) a precariedade

Temos de virar tudo ao contrário e virar tudo ao contrário significa deixarmos de pensar o trabalho como um sistema de trocas baseado no dinheiro. Significa, na crise actual, delinear estratégias e soluções que garantam o apoio a todos e a todas, sem excepções.

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Paulo Pimenta

“Está fora do regulamento
não merece garantir o sustento,
apresenta o documento
que valida a tua pobreza,
que a tua conta do banco está tesa
e um pobre com fome 
não perde a compostura,
apresenta a candidatura”.

Assim escreve o músico Daniel Catarino numa canção feita à queima-roupa sobre as burocracias “kafkianas” e as alíneas que legitimam que haja gente fora dos apoios. O 1.º de Maio está aí e o desalento nunca foi tão grande. 

Já passámos a barreira dos 30 e alguns de nós estão próximos dos 40. Já não somos propriamente jovens, mas continuamos a viver em casas partilhadas ou a regressar ao ninho dos pais; temos contratos de trabalho precários ou recebemos debaixo da mesa; somos mestres em malabarismos e na arte de viver com pouco. Somos (ainda) a Geração à Rasca ou a Geração Perdida, termo com que nos baptizou a Organização Internacional do Trabalho, em 2012. Nascemos nos anos 80, crescemos com iogurtes no frigorífico, com os discursos austeros de Cavaco Silva e com a promessa dos dinheiros da CEE. Estivemos nas lutas contra a austeridade e, pasme-se, quase dez anos depois estamos praticamente na mesma. Sejamos francos: muitos/as de nós não desejávamos a vida estável dos nossos progenitores — ter emprego efectivo, carro à porta e comprar casa própria —, mas daí à vulnerabilidade e insegurança com a qual nos debatemos hoje vai uma larga distância.

Já é quase de senso comum que esta pandemia nos tem ensinado muito, em particular que a desigualdade de berço é uma condição irrefutável que se agudiza em períodos de crise e que o capitalismo é um sistema a abater. No contexto português, um dos aspectos mais evidentes é que a crise de 2009 nunca acabou e uma das mais graves sequelas é mesmo a generalização e naturalização da precariedade e exploração laboral. O contexto político e social desta crise é bem diferente, a começar por quem nos governa e que, apesar de tudo, não se compara com o tempo do Passos Coelho e do Paulo Portas.

Ainda assim, há muito a fazer no que toca à protecção social. Nas últimas semanas, tem aumentado o número e visibilidade das pessoas que ficaram fora dos apoios ou daquelas para quem o valor provido pela segurança social não dá sequer para pagar metade da renda. Quando olhamos para estes casos sobressai uma importante questão: como é que se define quem merece ou não apoio económico? Uma investigadora que produz ciência, que publica artigos e fala em congressos internacionais não está a dar um contributo à sociedade? Um músico que escreve canções ouvidas em casa ou enquanto esperamos pelo autocarro não está a oferecer algo a todos nós? Um dirigente associativo que organiza debates e oficinas, contribuindo para gerar massa crítica, não é digno de assistência? Uma operadora de call center que, nas horas vagas, recolhe animais na rua ou limpa matas e praias, não é uma boa cidadã? Como se mede o valor de uma pessoa? É pelos descontos que faz? E quando não podemos fazer descontos? E quando o que fazemos não implica dinheiro?

Não quero com isto comprar uma guerra de gerações, já nos tentaram impingir isso anteriormente e não é de todo o que precisamos. Falo apenas da realidade que conheço melhor, com a consciência de que, ainda assim, pertenço a um grupo privilegiado: porque sou branca, porque ainda sou relativamente nova e porque tenho capital cultural e social. O que quero dizer com este desabafo é que temos de virar tudo ao contrário e virar tudo ao contrário significa deixarmos de pensar o trabalho como um sistema de trocas baseado no dinheiro. Significa, na crise actual, delinear estratégias e soluções que garantam o apoio a todos e a todas, sem excepções.

No entretanto, a luta organizada contra a precariedade voltou a ganhar fôlego e a preencher os espaços da nossa imaginação e isso só pode ser bom. A minha mãe sempre me disse que, mais do que o 25 de Abril, o 1.º de Maio de 1974 foi o dia de todas as esperanças e todos os (im)possíveis.

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