Depois de uma pausa, os protestos regressam. E é apenas o início

No Líbano, está em curso a “revolta do pão”. No Bangladesh, os que fabricam a roupa que mais se veste no mundo exigiram salários e aumentos, quando as fábricas fecharam. Na Polónia, encontraram-se formas de travar restrições ao aborto.

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Os militares libaneses têm disparado balas reais contra os manifestantes ESPER MELHEM/LUSA

Decretou-se a morte dos protestos com a pandemia de covid-19. Mas não morreram, fizeram apenas uma pausa. Regressaram agora, e com mais força. Uns são motivados pela falta de equipamento de protecção individual para o combate à pandemia da covid-19, outros ganham força com o degradar da situação económica nos países e há quem se manifeste contra o aumento da mão férrea de regimes contestados. Há ainda quem se adapte à nova realidade fazendo das redes sociais o campo de batalha.

Por agora, os protestos estão longe dos registados no ano passado - chamado de “ano dos protestos de rua” pelo Washington Post. De acordo com dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (uma organização fins lucrativos nos EUA), registaram-se no mês de Abril 1967 protestos pacíficos e violentos, quando no mesmo período do ano passado foram 4507. Mas a intensidade é grande, como acontece no Líbano. 

Líbano

O Governo libanês calcula que pelo menos 75% da população necessita de ajuda imediata num momento em que a dívida pública está nos 170% do PIB, a mais alta do mundo, e a libra libanesa tem sofrido quedas brutais. A notícia de terem saído do país, apesar do controlo de capitais, 5,7 mil milhões de dólares de bancos para o estrangeiro foi a gota de água para milhares de libaneses que, confinados, deixaram de ter qualquer sustento. Há quem procure no lixo alguma coisa para saciar a fome. 

E por isso, com gritos de “temos fome”, as manifestações regressaram no dia 20 de Abril às ruas. Nesta “revolta do pão”, atiram-se bombas incendiárias contra bancos e forças de segurança por todo o país. Em resposta tem havido balas, e um manifestante foi morto em Trípoli. Os militares dizem que um dos seus veículos foi atacado com uma granada de mão. 

Em vez da repressão dissuadir, inflamou os ânimos dos manifestantes e os gritos de vingança fizeram-se ouvir, e os protestos ganharam força: novas sucursais bancárias foram incendiadas e houve mais confrontos com os militares. Fala-se de caos nas ruas.

“Só queremos pão, é muito simples, roubaram-nos tudo”, disse ao El País um jovem manifestante com as mãos cheias de pedras e a cara tapada com uma máscara, “para se proteger da covid-19 e do gás”.

Iraque

Resistiram ao confinamento, suspeitando que era uma desculpa do Governo para os travar, mas cederam e foram para casa. Os manifestantes iraquianos viram os seus acampamentos destruídos pelas forças de segurança mas, mal o confinamento foi suavizado, voltaram às ruas para exigir o que sempre exigiram: o fim de um sistema político que consideram corrupto e ineficaz, prejudicando os que menos têm. 

Dezenas de pessoas dirigiram-se, na semana passada, à Praça Tahrir, no centro de Bagdad, e um manifestante foi morto e vários ficaram feridos por homens desconhecidos - as autoridades têm usado milícias xiitas pró-Irão, vestidas de preto, para reprimir. A maior parte da população mantém-se em casa, mas o descontentamento continua a ferver e os manifestantes prometeram não dar paz social ao Governo. 

Chile

Ouviram da boca do Presidente chileno, Sebastián Piñera, que o referendo sobre uma nova Constituição, agendado para Outubro, podia ser adiado e não hesitaram sair à rua, violando o confinamento que respeitavam até então. Centenas de chilenos protestaram na passada segunda-feira em Santiago e a resposta das autoridades foi a mesma dos meses anteriores: canhões de água e balas de borracha. Dezenas de pessoas foram detidas. 

“Andamos a dizer ao Governo: olhem pelo povo e deixem os vossos interesses económicos de lado”, disse à Al-Jazeera a artista chilena Paloma Rodriguez, para quem é “impossível permanecer calada”. Ou ficar quieta.

Bangladesh

Sem aviso, o mundo deixou de comprar têxteis e os patrões (os donos de muitas das marcas mais consumidas no Ocidente) decidiram cortar os salários aos trabalhadores no Bangladesh. Milhares de fábricas fecharam para evitar a propagação do vírus e, sem os seus magros salários, milhares de trabalhadores não conseguem sobreviver. No domingo, centenas deles marcharam pelas ruas de Dacca, a capital do país, para exigir salários e aumentos.

“Há dois meses que não recebemos. Não temos comida, não temos dinheiro. Deixaram-nos a morrer à fome”, disse ao Telegraph India um manifestante, Mohammad Ujjal. 

O confinamento no país vai-se manter até 5 de Maio, mas as fábricas abriram já esta segunda-feira, depois de grande pressão dos patrões junto do Governo. Os trabalhadores tiveram que escolher entre morrer de fome ou arriscar morrer com o vírus. Sem alternativa, escolhem o inimigo que não se vê. “O medo do coronavírus existe, mas estou mais preocupado em perder o meu emprego”, disse à AFP um trabalhador, Mofazzal Hossain.

Hong Kong

Prometeram não desarmar mesmo com a pandemia e, para o provar, já há um calendário de protestos a correr nas redes sociais, com iniciativas até ao início de Junho, diz o South China Morning Post. Lam Wing-Kee, livreiro refugiado em Taiwan, apela a que se continue o combate pela democracia. 

Lam pediu moderação nos protestos. “As pessoas precisam definitivamente de lutar, mas há muitas formas de protestar”, disse Lam Wing-Kee à Deutsche Welle. “Quando a polícia ataca manifestantes com armas letais, não precisam de responder com bombas incendiárias”, continuou, argumentando que a luta será bastante longa, para lá de “três a cinco anos”. 

“O povo de Hong Kong não vai recuar perante prisões em massa e vai persistir na irreversível revolução do nosso tempo”, disse em comunicado a Frente de Direitos Cívicos de Hong Kong. Há duas semanas, as autoridades detiveram 15 activistas políticos, por suspeitarem que uma nova vaga de protestos estivesse a ser preparada. Foi o tiro de partida para uma nova escalada do confronto e, em retaliação, os manifestaram fizeram um protesto num centro comercial, depressa reprimido pela polícia. 

A China tem pressionado juízes de Hong Kong a julgarem os manifestantes com base nas leis de segurança nacional. A acontecer, podem ser acusados de “traição, secessão e subversão”, criminalizando o movimento. 

Índia

Milhares de trabalhadores migrantes viram-se subitamente sem trabalho e o anúncio de prolongamento do confinamento até 3 de Maio na Índia, pela voz do primeiro-ministro, Narendra Modi, foi a gota de água. Dirigiram-se para estações de comboio e de autocarros encerradas e foi lá protestaram, exigindo o direito de regressar a casa para se reunirem com os familiares e ali poderem sobreviver. Mas a polícia não os ouviu e avançou sobre eles violentamente. As autoridades têm reprimido quem, sem nada para comer, sai de casa em busca de sustento em mercados locais e, dizem os observadores, a Índia é um barril de pólvora à espera de explodir. 

Fora da rua

A pandemia obrigou muitos a encontrar outras estratégias de protesto que não as manifestações de rua. Na Polónia, por exemplo, onde uma proposta de lei quer proibir totalmente o aborto, activistas dos direitos das mulheres difundem conteúdos de protesto nas redes sociais. E quando a luta digital é insuficiente, fazem manifestações de rua com poucas pessoas, separadas por dois metros, desfilam nas ruas dentro de carros buzinando ou hasteiam bandeiras nas janelas em defesa da autodeterminação das mulheres.

Na Argélia, membros do movimento Hirak, que há meses lutam pela mudança de poder no país, desapareceram das ruas, mas criaram uma rádio, sediada no estrangeiro, para difundir conteúdos de discussão política e artística e para organizarem a forma como, mesmo confinados, poderão continuar a lutar por uma sociedade democrática. Os militares não conseguem travar a difusão da mensagem nas redes sociais.

“Falamos sobre ditaduras, falamos sobre liberdade de expressão, falamos sobre pessoas na prisão. Criticamos as acções do Governo de outras formas”, disse ao Voice of America o activista e fundador da Radio Corona Internationale (RCI), Abdallah Benadouda. 

Em Israel, milhares de manifestantes mostraram que é possível protestar respeitando as orientações das autoridades de saúde. No passado fim-de-semana, milhares de israelitas juntaram-se na Praça Rabin, em Telavive, para denunciar a destruição da democracia sob a governação do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e, usando máscaras, mantiveram os dois metros de distância. E, nesta quinta-feira, dezenas de manifestantes reuniram-se à porta do tribunal que ia decidir se Netanyahu podia tomar posse como primeiro-ministro, dado ser arguido em três casos de corrupção (o tribunal decidiu que pode). 

O movimento global contra as alterações climáticas, um dos mais dinâmicos do mundo, também se adaptou. Os colectivos fazem conferências, debates e reuniões online, produzem conteúdos multimédia, criam petições e inundam os e-mails dos responsáveis governativos com apelos, tecendo ligações entre a actual crise e a insustentabilidade da produção da actual sociedade

“Quer queiramos ou não, o mundo mudou. Pode nunca mais vir a ser o mesmo. Temos de escolher um novo caminho”, disse Greta Thunberg numa reunião no YouTube para assinalar o 50.º aniversário do Dia da Terra.

A pandemia

A falta de máscaras tem sido uma das razões para muitos dos novos protestos. Nos Estados Unidos, enfermeiros, empunhando cartazes, fazem cordões em torno dos hospitais para o denunciar e, na Bolívia, duas centenas de trabalhadores do Hospital do Norte, na cidade de El Alto, próxima de La Paz, manifestaram-se para denunciar que estão a trabalhar sem qualquer protecção, arriscando as vidas e dos seus familiares. 

“Somos mais de 200 trabalhadores a arriscar as suas vidas e de familiares por não termos medidas de biossegurança. Somos, infelizmente, um foco de infecção”, disse a enfermeira Carla Poma, representante dos trabalhadores do hospital boliviano, citado pelo Extra Globo

Na Alemanha, médicos publicaram esta semana fotos suas nus, com cartazes a tapar partes do corpo, para denunciar a falta de protecção e, no México, profissionais de saúde marcharam, na segunda-feira, pelas ruas da Cidade do México para exigir material de protecção individual, com muitos a terem apenas uma máscara para usar por dia. Há neste momento mais de 300 profissionais infectados. 

Anticonfinamento

Em países com movimentos de extrema-direita fortes, como os Estados Unidos, Brasil e Alemanha, tem havido protestos com centenas de pessoas a exigir, nas ruas, o levantamento das medidas de isolamento social, argumentando estarem a prejudicar a economia e usando teorias de conspiração. Nos Estados Unidos, a 20 de Abril, milhares de manifestantes juntaram-se em cidades de todo o país para pressionar os governadores a levantarem as medidas e, no Brasil, o Presidente, Jair Bolsonaro, já participou num protesto a defender o mesmo

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