“Mapplethorpe é um clássico”

Em Setembro de 1992, numa passagem por Lisboa, o curador e crítico italiano Germano Celant, na altura conservador do departamento de arte contemporânea do Museu Guggenheim, deu uma entrevista ao PÚBLICO, que agora reproduzimos. Germano Celant morreu nesta quarta-feira, aos 80 anos, em Milão, na sequência de infecção causada pelo novo coronavírus.

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michelle gregolin/reuters

O museu Guggenheim define-se, pela primeira vez na história da museologia, como projecto global, inclusive no sentido geográfico, o que tem sido contestado em alguns sectores culturais norte-americanos. Além deste projecto, Celant é também responsável pela retrospectiva sobre a obra do fotógrafo Robert Mapplethorpe [morreu a 9 de Março de 1989, vítima de sida], e que esteve na origem de um escândalo — e de uma tentativa de censura — nos sectores mais conservadores da sociedade americana. Celant foi, na década de 70, o teorizador da Arte Povera italiana.

Ambos os projectos, o museu Guggenheim e a retrospectiva de Mapplethorpe, são polémicos.
Gosto imenso de estar envolvido em coisas polémicas! Considero isso como um cumprimento. Não sei se o Guggenheim é polémico, mas só se for porque se está a criar uma coisa que não existe. É um sonho. E todos os sonhos deparam sempre com uma reacção muito conservadora. Tem-se um sonho, e quer-se mostrar uma coisa que nunca foi mostrada, como fez Mapplethorpe. E depara-se com a reacção de pessoas que não querem ter um sonho, que não se querem mexer. Neste sentido, acho que o museu está a tentar criar uma nova ideia de museu, uma nova metodologia no sistema museológico. E foi por isso que, pela primeira vez aceitei trabalhar num museu. Aceitei porque o director, Thomas Kren, tem um sonho, e esse sonho é criar uma espécie de museu global.

Quanto à polémica de Robert Mapplethorpe, não acho que a sua visão seja polémica. Foi naquela altura, e essa altura já passou. Ele envolveu-se com uma tribo, um clã — dos sado-masoquistas — que, hoje, já não existe. É preciso olhar para isto de um ponto de vista quase antropológico. A reacção da sociedade americana a Mapplethorpe é polémica. Escrevi um livro acerca de Mapplethorpe tentando provar o seu classicismo. Ele tem muito a ver com Canova, com David, com esse tipo de beleza. Quando ele fotografa uma pessoa pendurada pelos pés, é um Cristo ao contrário. Ele é muito, muito clássico.

Esteve ligado ao movimento Arte Povera em Itália desde o seu início. Parece haver agora um novo interesse pela Arte Povera, da parte dos artistas mais novos. Como vê isso?
Bem, já há cerca de 25 anos que não estou envolvido com esse grupo. Na realidade, esse interesse manifestou-se ainda durante os anos 80. Quanto a essa reacção, naturalmente começa-se a pensar naquilo que aconteceu à arte Pop. De uma certa maneira, a década de 60 não acabou com a arte Pop. Havia o Minimalismo, na América, e a Arte Povera na Europa. Se as jovens gerações quiserem ter uma identidade, têm que se relacionar com qualquer coisa que lhes pertença. A Arte Povera é um ponto de referência a partir do qual, como europeu, se pode trabalhar. Se não, cai-se num limbo. É um ponto de referência como foi o Cubismo, o Futurismo.

Mas aí não há uma contradição? Durante os anos 80, também houve um movimento na direcção da história, da tradição.
Penso que a abordagem é diferente. Na década de 80, olhava-se para a História copiando a História, o que é muito diferente de viver com a História. Copiar, citar, é muito superficial. Se olhar para Faber, por exemplo, ele vivia com a história, o que é uma atitude tipicamente europeia. O pós-modernismo copiava coisas. Nós aceitamos a estratificação do tempo, e é por isso que podemos viver com ele. Pode eliminar-se a cópia, porque é superficial. A vida, não.

É aí que vê uma via para os jovens artistas de hoje?
Sim, eles sabem que as raizes são um elemento muito importante. Não se trata de uma identidade nacional. Não é por eu ser italiano que tenho que copiar De Chirico. Não é isso; é preciso desenvolver a sua própria identidade, crescer na História e não copiar a História. Foi esse o erro que os artistas cometeram durante a década de 80: apenas copiaram a História.

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