Dia 31: Não vamos conseguir protegê-los de tudo, nem da pornografia

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Filha,

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Nesta quarentena descobri o prazer de desenhar e pintar com aguarelas, com a caixa que as tuas filhas deixaram cá em casa. Descobri que é irrelevante ter ou não jeito, o que importa é que me ajuda a parar e a observar as coisas à minha volta: sabes que as riscas das zebras continuam para a crina, ou seja a crina também é a duas cores? Não, não aproveitei o Estado de Emergência para abrir um jardim zoológico, mas desenho a partir do que vou vendo na televisão e nos livros, e ontem interessei-me por zebras.

Mas não quero falar de pintura, mas da espionagem dos motores de busca na Internet: acreditas que hoje quando abri um site, saltou de lá um anúncio de aulas de pintura, e quando acedi ao YouTube, apareceu um pop-up com um rapazinho que me queria ensinar a desenhar? É arrepiante. São as regras do jogo e tenho idade para saber disso, mas e os meus netos? Que lhes saia na rifa como aprender a desenhar zebras não me preocupa, mas se sem saberem como, nem porquê, forem confrontados com cenas cruas de pornografia? Assusta-me. Por curiosidade até podem ir à procura de mais informação sobre relações sexuais ou o corpo, mas daí a apanharem com imagens explícitas e violentas, vai uma enorme diferença.

Nesta quarentena, em que passam tanto tempo com computadores e telefones inteligentes na mão, o risco é exponencial. Mais do que controlar o que vêem, há maneira de os impedir de serem confrontados com uma coisa destas?

Enquanto espero pela tua resposta, vou desenhar o gato da vizinha. Tranquiliza-me.


Querida Mãe,

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Uff, prefiro mil vezes manter na cabeça a imagem do gato da vizinha do que as de tudo o que pode surgir na Internet com a palavra errada. É mesmo assustador. E é também assustadora a (minha) capacidade de ser ingénua sobre esse assunto.

Como sou daquelas que nunca, jamais, em tempo algum, terei paciência para ler aqueles formulários de protecção de dados que surgem quando entro numa página, clicando rapidamente no “sim, autorizo” só para começar a ver o que me interessa, parece-me que o meu cérebro rejeita os alertas de perigo, substituindo-os por certezas cor-de-rosa de um mundo sem bandidos. Virtuais, ou outros. Mas, como a mãe, quando, por termos pesquisado uma receita de cozinha light, passamos a ser perseguidos por anúncios de dietas, deixa de ser possível continuar a fingir.

Além do mais, se esta negligência é aceitável quando a vítima posso ser eu, não o é obviamente quando falamos dos miúdos, que até por uma palavra mal escrita podem acabar a ver imagens que não saem da cabeça. Sejam de violência, sejam de cariz sexual.

A questão de base é a confiança, mas não é só a nossa confiança neles, mas também a confiança que eles têm em nós. Uma grande parte do seu mundo, das suas referências, passa pela Internet, pelos youtubers e redes sociais. Se nos apanharem a olhar para a sua realidade com desprezo, vamos perder a possibilidade de 1) perceber sequer o que andam a ver, e 2) por que é que gostam tanto do que vêem. Simultaneamente, vamos tornar muito mais difícil que venham conversar connosco quando apanharem pela frente coisas mais incómodas, ou que os deixem preocupados.

Mas, o problema, é que mesmo que consigamos sentar-nos ao seu lado, entrar naquilo com algum à vontade, resistindo a rolar os olhos perante o que nos parece não ter graça nenhuma, não vamos nunca conseguir protegê-los de tudo.

Mesmo que confiemos nos nossos filhos, e nas suas capacidades de não procurar conteúdo desadequado, é tão fácil tropeçar nele mesmo sem querer. Quantas vezes as gémeas não vieram assustadas porque num vídeo infantil aparecia, inesperadamente e sem sentido nenhum, um trailer para um filme de terror.

Nas idades mais novas acho que se justifica usar filtros que não deixam passar conteúdo que tenham certas palavras, ou imagens. E há canais/sites que já têm esses filtros postos, como o YouTube Kids ou algo equivalente, e parece-me que são bons pontos de partida para iniciar a “literacia” virtual. Nos mais velhos, os filtros podem continuar a ter vantagem, mas é sempre preciso dar um passo extra de confiança porque duvido que eles, se quiserem, não possam desactivar em três minutos todas as “protecções”.

Isso ou passarmos a ser Amishes... Há dias em que não me parece a pior ideia.

Beijinhos!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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