Pandemia forçou os bancos centrais a reinventarem-se outra vez

As autoridades monetárias são, no meio de uma crise com características inéditas, aquilo que separa vários Estados, bancos e empresas da insolvência. Para continuarem a desempenhar este papel, os bancos centrais podem vir a ser obrigados a pisar terrenos desconhecidos.

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Reuters/Vincent Kessler

Pouco mais de uma década passada sobre a crise que os forçou a transformarem-se radicalmente para evitar a entrada das suas economias na armadilha da deflação, os principais bancos centrais mundiais estão novamente a ter de se reinventar.

Perante uma crise com características inéditas, e com as taxas de juro já a zero, as autoridades monetárias das grandes potências estão a ir cada vez mais longe no apoio directo que dão a Estados, bancos e empresas, pisando terrenos que até há pouco tempo nem se atreviam a imaginar. Mas com a sorte da economia mundial cada vez mais nas suas mãos, a exploração de novas fronteiras na política monetária pode não ficar por aqui.

Esta quarta-feira, a Reserva Federal norte-americana (Fed) anuncia os resultados da reunião do seu comité de política monetária. E na quinta-feira será a vez de o Banco Central Europeu (BCE) reunir o seu conselho de governadores.

Mais do que nunca as atenções dos mercados estão centradas naquilo que será decidido pelos bancos centrais. É destes, e não dos Estados, que têm vindo as medidas com a dimensão e a rapidez necessárias para produzir um efeito significativo no combate à crise. Quando as medidas ficam dentro do previsto, há suspiros de alívio, quando desiludem, há um abalo nos mercados.

A pressão para continuar a agir tem sido portanto muita, forçando os bancos centrais, em especial a Fed e o BCE, a irem cada vez mais longe. Em primeiro lugar, na ajuda que dão aos Estados para estes conseguirem financiar-se a custos reduzidos.

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Os défices públicos estão a disparar e os Estados (incluindo o português) estão todos ao mesmo tempo a recorrer em larga escala aos mercados para pedirem os empréstimos de que precisam. Na zona euro e nos EUA têm conseguido fazê-lo a taxas de juro favoráveis, mas está a tornar-se cada vez mais claro que, neste momento, são apenas os bancos centrais que permitem que não se registe um agravamento das taxas, à custa do alargamento dos seus balanços.

No caso da zona euro, isso é particularmente evidente. Desde que a crise começou, o BCE reforçou em quase um bilião de euros o volume de compras de títulos de dívida pública que está disposto a efectuar no decorrer deste ano. São essas compras que têm permitido que, mesmo quando os mercados se mostram desiludidos com as medidas tomadas nas cimeiras de líderes europeus, a taxas de juro dos países do Sul (e em especial da Itália) não subam mais.

Neste capítulo, o BCE está a ser forçado a ir mais longe do que durante a crise do euro entre 2012 e 2015 – não só no volume de dívida comprada, mas principalmente pelo facto de ter assumido que não irá cumprir o limite que se tinha auto-imposto para a quantidade de dívida (um terço) que pode deter de cada país. Esta liberdade que o BCE deu a si próprio pode vir a motivar aqueles que acusam a entidade liderada por Christine Lagarde de estar a violar o princípio de não monetização das dívidas públicas a apresentar novas queixas em tribunal, principalmente na Alemanha.  

Surpreendentemente, nos EUA também se está a assistir ao mesmo tipo de fenómenos. Para além de continuar a comprar grandes quantidades de dívida pública emitida pelo Tesouro norte-americano, a Fed está de igual modo a ser chamada a apoiar os estados e as cidades, à medida que estes vêem as suas contas serem abaladas pela pandemia.

O Senado dos EUA não está disponível para transferir dinheiro para os estados e, por isso, a Fed, numa medida inédita, alargou o tipo de activos que compra, passando a incluir também obrigações municipais. Só isso permitirá que as taxas de juro exigidas não sejam muito altas. A Fed definiu como limite que as cidades que apoia tenham mais de um milhão de pessoas, mas mesmo essa fronteira deverá ser ultrapassada, perante as críticas de discriminação de que foi alvo.

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No apoio aos bancos, tem sido também evidente a preocupação em fazer tudo o que for preciso para evitar faltas de liquidez. No caso do BCE, para além de estarem a ser oferecidos empréstimos de longo prazo a taxas tão baixas como -0,75%, abriu-se também a porta à aceitação de títulos com rating “lixo” como garantia no financiamento concedido aos bancos. No passado, essa foi uma fronteira que o BCE nunca quis ultrapassar.

No caso das empresas, o BCE também reforçou o volume de compras de títulos obrigacionistas emitidos por empresas e passou a adquirir também papel comercial, para conseguir apoiar de forma mais directa empresas de menor dimensão. Nos EUA, a Fed foi ainda mais longe, lançando uma linha de crédito de 2,3 biliões de dólares que pode ser usada, para além de pelas autoridades locais, também pelas pequenas e médias empresas.  

Este papel de enorme destaque que os bancos centrais estão a assumir poderá não ficar por aqui. E podem mesmo já sair novidades das reuniões desta semana, nem que seja para não correr o risco de desiludir os mercados.

São vários os novos caminhos que podem ser explorados. No caso do BCE, há cada vez mais analistas a alertarem que, ao ritmo a que os Estados estão a emitir e com as pressões dos mercados sobre os países do Sul a não aliviarem, o banco central com sede em Frankfurt será brevemente forçado a anunciar um reforço do seu programa de compra de dívida.

Outras medidas podem incluir alargar ainda mais o tipo de activos que o BCE pode comprar, incluindo, por exemplo, obrigações emitidas pelos bancos ou fundos de investimento. E se quiser ainda ir mais longe na resolução dos problemas do sistema financeiro, principalmente dos países mais frágeis, adquirir crédito malparado dos bancos da zona euro.

Outro limite ainda mais extremo que está por ultrapassar é o da entrega de dinheiro directamente a todas as pessoas. Seria a concretização quase literal da ideia de “lançar dinheiro de um helicóptero”. Parece ser ainda um cenário distante, mas ao ritmo a que os bancos centrais têm vindo, nos últimos anos, a superar outros limites, ninguém pode dizer com segurança que esta baliza, como outras, não será também ultrapassada.

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