Covid-19: uma família, 16 infecções e 18 mil pessoas em cerca sanitária

A Madeira passou de uma situação controlada para o susto de ver surgir uma nova cadeia de transmissão local num bairro social. A solução foi pôr toda a freguesia em cerca sanitária e realizar centenas de testes.

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LUSA/Homem de Gouveia

As coisas estavam a correr bem.  

Na segunda-feira, dia 13 de Abril, a Madeira tinha 51 casos confirmados de infecção pelo coronavírus. No dia seguinte, o número subiu ligeiramente para 53. Na quarta-feira, os mesmos 53 e na quinta-feira manteve-se.  

Nada de inédito. Desde o início da pandemia, e passado o crescimento inicial dos primeiros dias, o arquipélago tem somado vários boletins diários sem novos casos de infecção. Sexta-feira, um novo positivo e os números globais estavam nos 54 casos de covid-19, sempre sem vítimas mortais e com apenas uma pessoa internada nos cuidados intensivos do Hospital Dr. Nélio Mendonça, no Funchal.  

Sábado, dez novos casos. Domingo, mais 19. Todos no mesmo bairro em Câmara de Lobos, um concelho a oeste do Funchal. Quase todos da mesma família, numerosa, que se terá reunido na Páscoa. A origem desta cadeia de transmissão local, explicou nesse dia a vice-presidente do Instituto de Administração da Saúde (IASaúde), Bruna Gouveia, vai até um membro dessa família, que regressou em Março do continente.  

O surto mobilizou as autoridades madeirenses. Miguel Albuquerque, o social-democrata que lidera o governo de coligação PSD-CDS que saiu das eleições regionais de Setembro passado, agiu depressa, e toda a freguesia de Câmara de Lobos foi sujeita a um cordão sanitário. Perto de 18 mil pessoas fechadas. Os 22 casos confirmados foram transferidos para uma unidade hoteleira da freguesia, onde estão a ser acompanhados pelas autoridades de Saúde regionais. 

Entre o anúncio do estabelecimento da cerca sanitária e a sua efectivação passaram algumas horas. Foi o suficiente para uma dúzia de embarcações de pesca abandonar a freguesia, rumo ao mar. Algumas tentaram desembarcar noutros portos da ilha, sem sucesso. Os que regressaram a terra (e os outros, quando regressarem), foram escoltados para Câmara de Lobos, para cumprir a quarentena. 

O surto eclodiu quando a Madeira se preparava, tal como o resto do país, para um retomar gradual da actividade económica. O executivo madeirense tinha já começado a distribuir máscaras sociais, laváveis e reutilizáveis, pela população. Cada agregado familiar vai receber, numa primeira fase, duas máscaras em casa, entregues pelo carteiro. Já foram distribuídas perto de 50 mil unidades, com a Câmara de Lobos, por razões óbvias, a ser agora uma zona prioritária para as receber. 

Para algumas profissões, como as ligadas à construção civil ou ao sector agro-alimentar, e todas as que impliquem atendimento ao público, a utilização da máscara passou a ser obrigatória na passada quarta-feira. Para a restante população, o governo regional tem incentivado a sua utilização, para quando chegar a hora de começar a sair de casa. 

Quando será, não se sabe. Os planos iniciais para o início do regresso à possível normalidade foram travados no último fim-de-semana. A opinião consensual dentro do governo é esperar para ver o resultado da cerca sanitária em Câmara de Lobos. Para já, e depois do susto com o surto naquela freguesia, que faz fronteira com o Funchal, os números aparentam novamente estar a estabilizar, agora nos 85 casos. Foi assim na terça-feira, na quarta, na quinta e na sexta-feira.  

Esse números não se traduzem por uma acalmia no laboratório do Serviço de Patologia Clínica, junto ao hospital. “Estamos a realizar cerca de cem exames por dia, todos os dias, desde que isto começou”, conta ao PÚBLICO Graça Andrade, a directora de serviço, sentada à porta do laboratório. Nem deveria estar ali. Deveria estar em casa. “Estou de folga estes dias, mas não ia conseguir estar descansada, sabendo que está toda a equipa aqui.” 

Antes da pandemia, o laboratório contava com um técnico, mas à medida que foram chegando os “baldes”, como se referem às embalagens que transportam as colheitas para serem testadas, foi preciso reforçar as equipas. “Eu pedi logo socorro. Estava aqui sozinha”, diz Ludivina Freitas, a técnica de análises que nos primeiros dias da crise se transformou em formadora para orientar os técnicos que foram chegando de outros serviços, para formar equipas no laboratório.” “Vieram da Bioquímica, da Hematologia... Serviços que nesta fase estão praticamente parados. Todos os recursos estão aqui”, diz, enquanto se prepara para analisar mais uma colheita. 

O procedimento é sempre o mesmo – cansativo, repetitivo, mecânico. Lavar as mãos, vestir a bata descartável, cobrir os sapatos, voltar a lavar as mãos. Colocar a touca, a máscara FFP3, a protecção ocular, calçar um par de luvas por baixo da bata descartável. Calçar um segundo par, por cima deste.  

“Antes esta sala era aberta, mas tivemos de adaptar. Mandámos fazer esta divisória e reforçámos a extracção de ar”, diz Graça Andrade, apontando para a estrutura de vidro e alumínio que separa a “área suja”, onde as colheitas são processadas, do resto do laboratório. Primeiro o balde é desinfectado com uma solução de água e lixívia. Depois faz-se o mesmo com o frasco da amostra. Ludivina Freitas usa um pano de limpeza doméstico, “daqueles que se vendem nos supermercados”, porque é “preciso poupar” material médico. Após a desinfecção, é usado um inactivador para “matar” o vírus.  

Sobra apenas o material genético, sem virulência, que será analisado na área contígua, designada por “semi-suja”. Aqui, o protocolo de segurança é mais reduzido, e os técnicos movimentam-se livremente pelo corredor estreito onde um computador, sempre ligado, vai mostrando as estatísticas de positivos, negativos e em análise. “Estamos sempre a ver isto. À espera que os positivos activos vão diminuindo”, diz Graça Andrade.  

Até ao momento, a Madeira regista 20 casos recuperados, e, desde o início da crise, contabilizou esta semana o secretário regional da Saúde e Proteção Civil, Pedro Ramos, foram feitas 2414 análises laboratoriais. As primeiras, explica Graça Andrade, levavam mais de um dia para sabermos os resultados.   

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Desinfecção em Câmara de Lobos homem de gouveia/Lusa

Sem estar certificado para a covid-19, todas as amostras recolhidas e processadas no laboratório do Funchal tinham de ser enviadas para validação no Instituto Ricardo Jorge. Só depois de cinco resultados positivos e cinco resultados negativos confirmados o laboratório ganhou certificação e independência, e os resultados começaram a sair ao cabo de quatro ou cinco horas. 

O laboratório funciona 24 horas por dia. Cinco turnos de duas pessoas, para dar resposta aos outros pedidos de análises clínicas que vão chegando. São menos, observa Graça Andrade, mas ainda chegam.  

No Parlamento, a oposição tem reclamado pela realização de mais testes, e Pedro Ramos responde que vão ser feitos em maior número à medida que for sendo necessário. Exemplo foi o que aconteceu em Câmara de Lobos, com a cerca sanitária. Todos os 60 utentes do lar de idosos local e os 77 funcionários foram testados esta semana. “Deram todos negativo”, diz ao PÚBLICO fonte do gabinete de Pedro Ramos. 

Com as escolas fechadas até ao final do ano lectivo, com os portos e marinas encerrados e o aeroporto fortemente condicionado, apenas a TAP voa para a Madeira e com frequência reduzida (e quem chega tem de cumprir 14 dias de quarentena num hotel), e com as medidas de confinamento e isolamento social a serem respeitadas, a evolução da pandemia na Madeira vai depender muito do que acontecer na freguesia de Câmara de Lobos.

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