Marcelo abre caminho a Costa para regresso tímido à normalidade

Está confirmado. O estado de emergência termina a 2 de Maio, mas a fase que se segue não pode ser de facilitismo. Depois da “luz no fundo do túnel”, Marcelo modera o tom e avisa que o surto ainda não acabou. Técnicos de saúde fixam limites para o aumento do contágio.

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LUSA/João Relvas

O plano para o desconfinamento está em marcha. Ontem, da reunião decisiva no Infarmed saiu o anúncio do Presidente da República de que o estado de emergência não será renovado, mas o tom dentro do encontro, e também fora, nas declarações feitas aos jornalistas à saída, foi de cautela. Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer com o levantamento das medidas de contenção. Marcelo Rebelo de Sousa pediu que não se entenda o fim do estado de emergência “como qualquer facilitismo” e preparou terreno a António Costa para avançar amanhã com um calendário prudente no regresso à normalidade.

A reunião com os epidemiologistas que aconteceu ontem no Infarmed era vista pelo Governo como essencial para a definição do processo de desconfinamento. É nestes encontros, que acontecem de 15 em 15 dias, que as autoridades de saúde fornecem dados científicos sobre a evolução da pandemia que, neste caso, poderiam determinar o início do levantamento das medidas de isolamento social determinadas em Março. 

Em reuniões anteriores, surgiu em cima da mesa uma espécie de número mágico para o desconfinamento: o R0, que fornece uma média de quantas pessoas são infectadas por uma única pessoa, teria de estar em 0,7. No entanto, este indicador ainda não está neste nível. Depois do encontro, o chefe de Estado disse que no Norte está abaixo de 1 e em Lisboa acima de 1. Já o deputado do PSD Ricardo Baptista Leite informou que está em 1,01 no Norte e em 1,18 em Lisboa. Nos dois casos, está nas imediações de 1 e ainda afastado do número mágico dos 0,7. 

No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa foi muito claro à saída do encontro: “O estado de emergência cessa a vigência dia 2 de Maio à meia-noite”. A melhoria dos indicadores nas últimas semanas já permitiu ao Governo começar a preparar o regresso faseado à normalidade e a partir de 4 de Maio já há medidas de contenção a serem levantadas, entre elas a abertura do pequeno comércio de bairro. O Presidente da República explicou também que o estado de emergência não pode ser usado para sempre. “Os portugueses também sabem que não é possível utilizar um instrumento, que é um instrumento para uma situação excepcional de fechamento durante um período limitado de tempo, para viver com ele durante meses consecutivos"

E um estudo apresentado na reunião pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) acrescenta àquele argumento outro de natureza mais económica e social, ao apontar para os efeitos positivos do desconfinamento na qualidade de vida. Uma fonte ouvida pelo PÚBLICO adianta que este estudo indica que entre os mais afectados pela pandemia estão algumas áreas geográficas e populações mais desfavorecidas. À saída do encontro, o dirigente do PCP Jorge Pires revelou que “a ENSP tem um barómetro que mostra que as pessoas confinadas há muito tempo nas suas casas começam a ter algumas dificuldades. Há problemas na organização familiar, levantam-se problemas na relação entre as pessoas dentro da mesma casa e, portanto, pensamos que é necessário desconfinar”.

"Não é o fim do surto"

Sem poder ter o estado de emergência por mais tempo e com a pandemia a começar a pesar nas contas das empresas, do Estado e nos orçamentos familiares e na qualidade de vida das pessoas, resta uma abertura progressiva. E a necessidade de acentuar a mensagem de cautela. “O fim do estado de emergência não é o fim do surto”, disse o chefe de Estado aos jornalistas.

Lá dentro, quem participou na reunião, na qual estava também o primeiro-ministro, António Costa, e representantes dos partidos, parceiros sociais e conselheiros de Estado - uns presencialmente e outros por videoconferência -, ouviu dos peritos de saúde que existem níveis de stress para alguns indicadores que têm de ser acompanhados de perto, assim que a economia e a sociedade se começarem a reabrir. Um deles está relacionado com a capacidade hospitalar instalada para internamentos.

Ontem, o número de pessoas internadas por covid-19 era de 936, mas simulações reveladas na reunião mostram que, se o número de internamentos chegar a 4000, então haverá uma sobrecarga dos serviços de saúde. Este número foi apresentado como “um limite de stress” na hospitalização, um “sinal de alarme” que num cenário de monitorização mais apertada pode até levar à “possibilidade de algum recuo”, explicaram ao PÚBLICO alguns participantes na reunião, onde foi dado como o certo “possíveis aumentos de contágios” com a abertura da economia que se iniciará a 4 de Maio. Apesar de funcionar como uma espécie de botão vermelho que se acende num painel de bordo, há quem olhe para ele descansado. “Só sucede se houver uma grande derrapagem. Hoje está nos mil”, diz outro dos presentes. 

Além da necessidade de acompanhamento de muito perto da evolução dos indicadores, na reunião foi ainda referido o papel da tecnologia no combate à doença. Segundo um participante, falou-se sobre os testes que estão a ser feitos para algumas aplicações que permitem, através de informação anónima e voluntária, que possa ser reconstruída uma cadeia de transmissão do contágio. Segundo este participante o tema não gerou polémica, até porque o que está em cima da mesa são aplicações não invasoras da privacidade de cada um. 

O tom de cautela à saída do encontro foi também acompanhado pelos partidos. O PSD avisou que “ainda estamos a meio da luta”, o CDS pediu um “plano seguro e claro”, o BE e o PCP pediram reforço das respostas sociais, apesar do fim do estado de emergência. Nesta matéria, a líder bloquista alertou que existem medidas de apoio que estão “indexadas à duração do estado de emergência”, que com o seu fim também terminam. 

Além da resposta social, o quadro jurídico para garantir algum nível de contenção no pós-estado de emergência foi também objecto de contestação por parte de alguns partidos, que se reúnem nesta quarta-feira com o primeiro-ministro.

"Para meter medo"

A partir da sede do partido, o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, mostrou-se contra o facto de o Governo querer declarar situação de calamidade depois do estado de emergência.”O estado de emergência ou o estatuto de calamidade, no essencial, serve para pressionar, para meter medo às pessoas, mesmo quando elas estão a respeitar os princípios, normais legais e de combate ao [novo] coronavírus”, disse o líder comunista. 

Ainda à saída da reunião no Infarmed, Catarina Martins também se tinha revelado contra o decretar de situação de calamidade. “Para o Bloco de Esquerda, as questões constitucionais não são questões de somenos”, disse a líder bloquista, acrescentando que “há medidas legais que podem ser adoptadas e que não precisam de estado de emergência”, dando como exemplo o desdobramento de turmas. 

Também a Iniciativa Liberal se mostrou contra a possibilidade de ser declarada a situação de calamidade. “Se a declaração do estado de calamidade contiver medidas que limitem desproporcionadamente, e sem base científica, os direitos dos cidadãos, estaremos contra, tal como estivemos contra o estado de emergência. Resta saber como se pode envolver a Assembleia da República nesse processo”, afirmou João Cotrim Figueiredo.

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