A Europa tem capacidade para sair mais forte da crise da covid-19

Para além do choque sanitário, a crise da covid-19 pode revelar-se, se forem feitas boas escolhas, a ocasião para um grande relançamento da Europa.

Winston Churchill afirmou que qualquer crise oferece oportunidades de uma importância equivalente à das ameaças que apresenta. O desafio lançado pela covid-19 à União Europeia insere-se perfeitamente neste adágio. Para além do choque sanitário, a crise da covid-19 pode revelar-se, se forem feitas boas escolhas, a ocasião para um grande relançamento da Europa.

Já tivemos muita sorte. Já nos apercebemos do nosso excessivo nível de dependência face à China quando surge uma crise sanitária, ainda mais quando esta origina tensões com aquele país. Para além disso, compreendemos que havendo mais coesão e solidariedade por causa da covid-19, a Europa não implodiria e não se seguiria uma vaga de governos populistas.

Mas isso não é suficiente. Para aproveitar a imensa oportunidade que nos é oferecida, é necessário passar da constatação à acção, da urgência às grandes escolhas estratégicas. Senão o Conselho Europeu, que se reuniu no dia 23 a fim de recordar princípios já estabelecidos e definir um quadro geral para o plano de relançamento e para a Comissão, não produzirá mais do que um esboço nos tempos que se seguem. Temos que exigir, temos que repetir, pois isso dá aos agentes económicos, que vivem e sentem quotidianamente a globalização, a possibilidade de ajudarem os líderes políticos a optimizarem o dispositivo.

Os sectores identificados pelo Conselho são os bons: consolidação do mercado interno, fundos de relançamento, acção e governança global – mas tudo irá depender de se o que está inscrito no plano de acção que será adoptado em Maio estiver em linha com os quatro pontos que se seguem: 

Primeiro: o mercado interno não poderá encontrar qualquer entrave. A crise da covid-19 demonstrou que, mesmo em circunstâncias de absoluto interesse público, os regulamentos incoerentes dificultavam a circulação de bens e serviços. Assim, agora deve ser também a ocasião de não deixar as coisas pela metade e eliminar as barreiras residuais de uma vez por todas.

Segundo: o fundo de relançamento deve ser dirigido para o futuro e não para o passado. Com, provavelmente, uma dotação de um bilião de euros, ou seja, mais ou menos o equivalente ao Orçamento da União Europeia para o período de sete anos (o Quadro Financeiro Plurianual) actualmente em discussão, o fundo de relançamento – incluindo o efeito de alavancagem – representa a iniciativa financeira mais significativa de toda a história na nossa União. Os montantes que estão em cima da mesa permitirão à União Europeia financiar os programas que ainda há pouco tempo pareciam totalmente fora de questão – é uma ocasião única.

Dois princípios devem orientar a acção da União Europeia na utilização dos fundos de relançamento. O primeiro princípio é a rentabilidade: é necessário que exista uma repartição justa entre os recursos necessários para amortizar os choques sociais e os consagrados ao aumento dos nossos futuros crescimento e competitividade, que deveriam idealmente representar pelo menos dois terços do total. Também nos investimentos destinados ao crescimento, é necessário que os fundos disponíveis sejam alocados especialmente aos grandes ecossistemas que compõem a nossa economia, em função de assegurar os mais elevados níveis de rentabilidade.

O segundo princípio é o impacto: é preciso, imperativamente, evitar a dispersão e concentrar em projectos de investigação e desenvolvimento, que podem ajudar a manter ou obter uma liderança mundial. As medidas de luta contra as alterações climáticas e pela digitalização propostas pela Comissão são prioridades absolutas, desde que tornem a nossa indústria mais resistente.

No entanto, será também necessário não negligenciar outros aspectos transversais, tais como a logística e o planeamento urbano, por exemplo, pois são essenciais à nossa competitividade global. Por fim, é preciso manter em mente que é mais acertado conservar o que já se tem do que conquistar o que não se tem. Pelo que serão necessárias políticas sectoriais destinadas a acompanhar a saída da crise de algumas das nossas indústrias de ponta, como sejam a aeronáutica ou a automóvel, se não queremos ver-nos privados de partes inteiras do nosso tecido industrial.

Terceiro: a actuação da nossa União deve manter-se global, mas deixar de ser ingénua. A crise da covid-19 impôs-nos duas palavras-chave: repatriamento e protecção. É com razões ponderosas, e sem qualquer hostilidade com o Império do Meio, que a União Europeia deve facilitar o repatriamento das produções mais sensíveis e, noutras áreas estratégicas, ela deve privilegiar uma saudável diversificação dos nossos fornecedores. Para aí chegarmos, devemos construir, e rapidamente, parcerias estratégicas fortes com países que nos são complementares e que se vêem confrontados com os mesmos desafios que nós – antes de mais a Índia, mas também os países da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático), o Japão e talvez o Brasil. Ter deslocalizado até este ponto na China, como, por exemplo, a produção de 80% das substâncias activas dos nossos medicamentos, é suicidário. O repatriamento de actividades sensíveis deverá, bem entendido, ser feito numa base europeia, tal como deverá acontecer com as golden shares. Algumas outras produções estratégicas poderão manter-se fora da União, sob a condição de se diversificarem: daqui a cinco anos, metade do que importamos da China nesses domínios estratégicos deverá ser produzido noutros locais.

Quarto: a governança europeia deverá tornar-se mais eficaz. Aqui também há dois aspectos. Por um lado, a recente decisão da República Checa de fechar as suas fronteiras com a Alemanha durante um ano é o derradeiro exemplo de que a preocupação de Angela Merkel de não deixar ninguém para trás não pode constituir um dogma. O tempo escasseia: é preciso colocar em prática as cooperações reforçadas entre Estados pelo Tratado de Nice… quem quiser acompanhar, que o faça.

Por outro lado, é preciso tirar ilações desta crise, abandonando todos os critérios ideológicos no tocante à divisão de competências entre a União Europeia e os Estados nacionais. Hoje todos concordam que, face à covid-19, a prevenção e a gestão das pandemias deverão ser efectuadas ao nível da UE. No entanto, isso é absolutamente o contrário do que foi decidido no Tratado de Lisboa em 2007, que exclui todas as competências sanitárias da União Europeia. Esperamos que não seja preciso aguardar por outros choques da dimensão do actual para confiar à UE as tarefas que ela poderá desempenhar melhor que os Estados-membros e impor a estes últimos os níveis mínimos a respeitar.

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