Teletrabalho em pós-pandemia: uma verdadeira oportunidade para o b-work

Está nas nossas mãos, enquanto sociedade, aproveitar para inovar estilos de vida e de trabalho. Há que concretizar a máxima, muito badalada mas nem por isso banal: fazer de uma crise uma oportunidade.

Há um conceito no jargão educativo que nos poderá ajudar a situar: blended learning (b-learning). A palavra blended (mistura) tem origem na junção de líquidos em sede de fabricação de whisky. Do ponto de vista do ensino-aprendizagem, há muito que se reflete e vai praticando a salutar mistura entre dinâmicas presenciais e atividades mediadas digitalmente. Esta pandemia forçou práticas (ou aproximações) de e-learning “puro”, que poderão vir a constituir rotinas de boas e equilibradas misturas, adiante, nas nossas escolas e universidades.

Do ponto de vista laboral, a circunstância atual precipitou dinâmicas de teletrabalho, que surpreenderam muitos trabalhadores, patrões e organizações.

A retoma gradual das condições sociais e laborais trará excelentes oportunidades de blended-work (b-work), mistura de trabalho em casa, mediado teledigitalmente, com trabalho presencial, num local de congregação organizacional. Face a estes desafios, convém ter em conta:

1. Sem autonomia responsabilizante não há bom teletrabalho...

É preciso que se abandonem as lideranças infantilizantes, que não confiam nos colaboradores e insistem nas práticas de gestão focadas na monitorização instrumental, senão mesmo em certo policiamento. Há que delegar, confiar e avaliar, pedindo responsabilidade e medindo produtividades.

Donos de empresas e líderes de organizações podem e devem ampliar as suas práticas e corrigir alguns vícios, gerando mais confiança e menos controlo, no sentido estrito do tempo. Todos nós nos apercebemos de pessoas que se deram muito bem com as práticas de teletrabalho nesta crise, mantendo os níveis de produtividade e, em muitos casos, ampliando-os.

2. Cada trabalhador é um caso...

O pior que poderia acontecer a um processo de abertura a b-work era industrializá-lo. Na verdade, cada caso é um caso. Haverá perfis que se não dão com o teletrabalho: conheço casos, principalmente no feminino, que preferem separar as águas e viver no regime ‘trabalho é trabalho, casa é casa’. No outro extremo, existem pessoas que se dão maravilhosamente com o trabalho a partir de casa: são gente normalmente muito metódica e organizada que concilia e alterna com tranquilidade os planos laboral, familiar, doméstico e quotidiano. Depois há situações híbridas, que preferem precisamente a mistura e se dariam muito bem com esquemas mistos um, dois ou três dias em casa e o resto na organização, fisicamente. Poder-se-ia ainda colocar a questão dos trabalhadores, funcionários públicos e não só, a quem se não vê perfil de autonomia, com tendência para o ser esguio e irresponsável, do tipo quanto menos melhor. A questão é complexa mas poderemos especular que um encostado será sempre um encostado, presencialmente ou virtualmente. E pode haver surpresas de produtividade, se não no curto prazo, no médio ou longo, ao ensaiar confiança a quem aparentemente não a merece.

3. A ocasião gerou competências novas

Não há qualquer dúvida que o confinamento gerou competências que pareciam adormecidas. As questões técnicas facilitaram-se: troca de ficheiros e manipulação digital, plataformas de reuniões como o Skype ou o Zoom, autoaprendizagem de procedimentos processuais e buscas em ambiente virtual, etc. Advinha-se melhor ainda com possíveis benfeitorias técnicas (largura de banda, sistemas áudio e vídeo, etc.). Por outro lado, houve também uma autopromoção da gestão dos tempos e de muitos procedimentos de autodisciplina de cada um dos cidadãos retidos em casa (turnos para gestão doméstica e de tomar conta dos filhos, necessidade endógena de rotinas, etc.).

4. É preciso portas abertas, do lado da legislação e dos políticos

Nada será possível sem um quadro legal (também ele mais aberto a dinamismos de confiança nas relações laborais) e sem incentivos políticos a estas oportunidades. No funcionalismo público, em particular, as chefias precisarão de lastro legal para ampliarem as suas delegações, como, de resto, aconteceu, no sentido amplo, durante esta pandemia. Também os sindicatos poderão participar nesta abertura, quer pela via de colocarem o assunto na agenda, quer também se compreenderem que o b-work, não implica uma total desregulação e terá de manter claros, a par dos direitos, os deveres dos trabalhadores, agora em formatos mais flexíveis.

5. Oportunidade de alívio na pressão urbana

Há consequências óbvias de alívio de alguma pressão urbana. Desde logo no trânsito (imagine-se Lisboa ou Porto sem um terço do tráfego ordinário...). A ponderar, também, a diminuição de emissão carbónica, de acidentes, de tensões no quotidiano social. Poderia haver condições para habitar zonas mais rurais, ou nas cinturas urbanas mais distantes das grandes cidades ou mesmo em regiões absolutamente interiores, se a componente laboral digital assumida fosse em grandes proporções. Oportunidades de regresso à Terra, no melhor dos sentidos.

6. A vida pessoal e as dinâmicas familiares podem agradecer

Todas estas circunstâncias possibilitam igualmente uma revisão e uma requalificação de muitas relações (do eu com o eu, do eu com o tu e do eu com os outros). Como bastantes pessoas foram ensaiando nesta quarentena (porventura não desse logo, no início, mas gradualmente), o teletrabalho tem um potencial de otimizar momentos e encontros vários...

Por isto mesmo a produtividade tem de ser vista num nível mais profundo, que contemple mas ultrapasse a mera métrica contabilística do número de objetos produzidos. Trabalhadores mais felizes e emocionalmente equilibrados produzirão mais e melhor, deprimirão menos e ampliarão os potenciais de identidade e corporeidade das organizações. A sociedade será melhor e mais justa...

Está nas nossas mãos, enquanto sociedade, aproveitar para inovar estilos de vida e de trabalho. Há que concretizar a máxima, muito badalada mas nem por isso banal: fazer de uma crise uma oportunidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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