Um templo de Harpócrates em Moçambique

Os “jihadistas” já nos revelaram o rosto, já nos falaram dos seus megaprojectos de terror e, no meio de tudo isso, parece-me que o Governo se esconde por detrás da cortina, em silêncio, como um actor que não conhece o seu papel mesmo tendo o guião da peça na mão.

O Governo de Moçambique estende uma manga da camisa na boca e faz um estrondo de silêncio aos jihadistas que raptam Cabo Delgado e espalham cápsulas de terror em todas aldeias e vilas. O silêncio cresce em todo país, e debaixo desse silêncio os ditos insurgentes içam no cocuruto da província o punho das suas bandeiras, realojam a população nas matas e obrigam-na a cultivar passos de fugas com a enxada dos pés.

Tanto horror em Cabo Delgado e o Governo estende mais a manga da camisa na boca e faz um estrondo de silêncio. Os jihadistas já nos revelaram o rosto, já nos falaram dos seus megaprojectos de terror e, no meio de tudo isso, parece-me que o Governo se esconde por detrás da cortina, em silêncio, como um actor que não conhece o seu papel mesmo tendo o guião da peça na mão.

As esquadras são invadidas e esvaziadas, os jovens das forças de defesa e segurança vêem as suas cadernetas militares convertidas pelos jihadistas em certidões de óbito que não chegam aos seus familiares — as famílias identificam os seus pelas cabeças nos vídeos que inundam as redes sociais. Os corpos dos jovens das forças de defesa e segurança nunca chegam aos seus familiares, viram troféus dos jihadistas conheço famílias, aqui em Maputo, que tiveram de fazer missas a retratos rodeados de velas porque não tiveram corpos, famílias que, de emboscada em emboscada dos jihadistas, perdem um pai, um filho, um irmão. E são jovens pobres que são entornados em Cabo Delgado e obedecem às regras dos seus superiores, que não estão em Cabo Delgado. 

Há dias, 52 jovens foram executados em Cabo Delgado, duma só vez, por se recusarem a aliar-se aos jihadistas, e o Governo fez o mesmo exercício: estendeu uma manga da camisa na boca e fez um estrondo de silêncio que não se entende. Os jihadistas já arrancaram o carro da polícia, já usaram as armas do nosso exército, já vestiram o uniforme da nossa polícia e do exército, já recrutaram uma réstia de jovens nacionais desempregados para as suas fileiras, e nada disso arranca a manga da camisa da boca do nosso governo nem cala o estrondo de silêncio.

Não se fala do terror que se vive em Cabo Delgado, mas afasta-se a manga da boca para se discutir os subsídios de reintegração dos deputados; parece-me que não se pensa em “reintegrar” Cabo Delgado no nosso mapa com todos subsídios de sossego. Claro que os deputados são pagos uma “miséria”, mas não há pior miséria que esquecer uma província inteira, que se esconde nas matas com fardos de medo, uma província que pode não ser Moçambique, mas onde vivem moçambicanos.

Nenhuma gota sobre Cabo Delgado na dita Casa do Povo. E são as igrejas que abandonam as orações no altar para falar de Cabo Delgado, é a imprensa privada que afasta as publicidades para falar de Cabo Delgado. E o silêncio é regra em todo este horror. Em Cabo Delgado os ataques são afastados para baixo do tapete, ninguém fala dos ataques, nos cafés nenhum sinal de conversa sobre os ataques; e há quem cuja actividade é vigiar os que falam dos ataques. Os que estão no terreno sabem que os jihadistas mandam cartas antes de atacar e mesmo assim a manga não sai da boca; desde 2017 que o governo anda com a manga na boca e quando a tira, para falar de Cabo Delgado, desdramatiza tudo. E enquanto isso, os “jihadistas” exibem em vídeos, nas redes sociais, cabeças, pernas e troncos de jovens, abatidos como animais em matadouros. E a manga não sai nem para o governo se assoar nem para bichanar...

Membros das forças de defesa e segurança fogem de Cabo Delgado, fazem vídeos escoiceando a população, o Estado Islâmico abre a janela do seu Amaq para reivindicar os ataques em Cabo Delgado, e o governo nem por um instante tira a manga para reivindicar uma tosse qualquer que não é sua. O governo estende uma manga da camisa na boca e faz um estrondo de silêncio aos jihadistas e, no meio disso tudo, ergue-se um templo, em Moçambique, para Harpócrates, o deus do silêncio. E espero que o governo não tire a manga da boca,  de supetão, tarde depois de ter a voz saqueada pelos jihadistas.

Sugerir correcção