A festa da liberdade em tempos de covid

O 25 de Abril não é hoje o que sonhávamos? Sem dúvida. Mas nenhuma realidade é tão bela como o sonho que lhe dá origem. Só as utopias nunca concretizadas não nos desiludem. E, apesar disso, o que obtivemos com a Revolução de Abril merece ser celebrado todos os dias…

É talvez em momentos como estes, em que a liberdade a que nos habituámos nos é restringida, que melhor sentimos o seu valor. A grande diferença, hoje, é que de uma forma geral essa limitação tem a nossa concordância, aceitamo-la, defendemo-la mesmo, em nome da nossa própria segurança. O que faz toda a diferença.

Mesmo assim, não foi por acaso que tanta gente, impedida de celebrar na rua o 25 de Abril, dia da Liberdade, o festejou nas suas casas, às janelas, nos terraços. Eram todos comunistas? Obviamente que não. Foi como se a covid-19 nos fizesse sentir como é importante a liberdade, como é importante a democracia e como ambas são frágeis, como nos podem ser arrebatadas de um dia para o outro, ou mais lentamente, quase sem darmos por isso.

Cresci num ambiente em que a palavra liberdade tinha um sentido concreto: no Liceu Francês Charles Lepierre de Lisboa, grande parte dos professores portugueses estavam impedidos de leccionar em escolas públicas porque se opunham à ditadura. Eles não “faziam” política, não tentavam doutrinar-nos, mas transmitiam-nos, transmitiram-me, os valores do humanismo e da liberdade. Como aqui escrevi há uns anos a propósito do falecimento de Ângela Grácio, professora de história, estou-lhes eternamente grata.

Foi devido a esse ambiente que fomos, um grupo de alunas ainda em plena adolescência, tentar desinquietar as meninas de bata preta do Liceu Maria Amália, para virem connosco ao Rossio, creio que em 1962, participar numa manifestação estudantil: “Não nos deixam” e não vieram. Mas nós fomos e foi o meu primeiro contacto com a violência policial. O segundo foi a concentração no Cais do Sodré de protesto contra a incúria do governo devido à queda da cobertura da gare, em Maio de 1963, causando a morte de 49 pessoas, entre as quais o filho de um dos professores do Liceu.

Experiência diminuta, mas suficiente para já em Paris, e na Sorbonne, fazer meu o Maio de 68, durante o qual respirar tinha um nome: liberdade. E foi essa liberdade que me levou a Abril, ou seja, à escolha de me juntar aos que por ela combatiam no país onde nasci.

Não vivi o 25 de Abril nem o 1.º de Maio em Lisboa. Cheguei a Portugal umas semanas depois a um país desconhecido, febril, em plena revolução, onde as pessoas falavam pelos cotovelos, saíam às ruas e cantavam novas canções. Mas também vi muito ódio, violência e medo. Fiel ao que acreditava ser o meu dever, continuei a mesma caminhada durante algum tempo, demasiado tempo, até perceber que o rumo escolhido era afinal um beco sem saída.

O rumo estava errado, mas não o seu objectivo. A liberdade, a independência, sempre foram para mim um fio condutor da minha vida. Enganei-me muitas vezes e, apesar de todas as contradições do pós-25 de Abril, esta data continua a ser o símbolo daquilo por que lutei. Por isso, gostei de ver tanta gente à janela cantando o Grândola, gostei de ver que, apesar de todas as pressões, as bem e as menos bem-intencionadas, o Parlamento cumpriu a missão da qual em democracia nunca deverá abdicar.

O 25 de Abril foi um golpe de Estado dos chamados militares de Abril. Todas as revoluções ou grande parte delas começam com um golpe de Estado, venha ele de onde vier. Mas o que define o seu carácter é a resposta da população. E não é por acaso que logo na manhã seguinte o povo saiu à rua a festejar. Festejavam o quê? O fim da ditadura, da omnipresença da polícia política, da censura, das prisões, da tortura e a esperança do fim de uma guerra inútil, mortífera e anacrónica. Festejavam a liberdade.

Mas essa liberdade não foi apenas fruto dos militares de Abril: foi também o resultado da resistência de décadas de comunistas, democratas e antifascistas, de militantes, intelectuais, artistas, escritores, mulheres e homens que sacrificaram a sua vida, e a vida das suas famílias. E foi fruto do regime democrático em que a população escolheu viver.

O 25 de Abril não é hoje o que sonhávamos? Sem dúvida. Podia encher páginas com considerações sobre o que em minha opinião corre mal em Portugal. Mas nenhuma realidade é tão bela como o sonho que lhe dá origem. Só as utopias nunca concretizadas não nos desiludem. E, apesar disso, o que obtivemos com a Revolução de Abril merece ser celebrado todos os dias…

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